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Chocolate nem sempre é doce: relatório alerta para riscos e obscuridão na cadeia de cacau

Chocolate nem sempre é doce: relatório alerta para riscos e obscuridão na cadeia de cacau

Das empresas que participaram da pesquisa, apenas 11% possuem um sistema de rastreamento integral da origem do cacau e das condições de trabalho associadas à produção

Com a chegada da Páscoa, os brasileiros se preparam pra comer mais chocolate. Estimativa da Associação Brasileira de Supermercados calcula que o consumo nos lares aumente 15% por causa do feriado em relação ao ano passado. Ao se deliciar com a guloseima, porém, muitas pessoas não têm ideia de onde vem a matéria-prima, o cacau, nem o impacto que sua produção pode ter na natureza e no clima quando realizada sem respeito ao meio ambiente e às pessoas.

Um levantamento realizado pelo movimento australiano Be Slavery Free classificou 72 marcas e varejistas que compram cerca de 95% do cacau em todo o mundo. Por meio do levantamento Chocolat Scorecard 2023eles perguntaram às principais marcas, fabricantes e comerciantes de chocolate o que eles sabem sobre suas cadeias de suprimentos de cacau e o impacto ambiental da produção.

Os resultados mostram que boa parte do chocolate não tem uma origem “doce”: 40% do cacau comprado globalmente tem origem obscura, pois é adquirido de forma indireta, sem que a empresa saiba de onde veio ou quem produziu. Ou seja, são altas as chances dos grãos que entraram no mercado terem sido cultivados em terras desmatadas.

Segundo o estudo, cerca de 75% do cacau mundial vem da África Ocidental, sendo a Costa do Marfim e Gana os principais produtores. Nos últimos 60 anos, esses dois países perderam cerca de 90% e 80% de suas florestas, respectivamente, com pelo menos um terço dessa perda florestal dando lugar à expansão da produção de cacau.

“Isso tem um efeito indireto na biodiversidade, uma vez que habitats cruciais para espécies ameaçadas são perdidos e divididos, e na qualidade do solo e do abastecimento de água na área, ainda mais se o cacau for a única cultura cultivada (‘monocultura’) o que exige que os agricultores usem mais pesticidas”, observa a WWF, outra ONG integrante da iniciativa Chocolat Scorecard 2023.

A produção de cacau também tem um custo humano severo, já que muitos dos cerca de 6 milhões de pequenos agricultores dos quais a indústria depende não recebem um salário digno e vivem em extrema pobreza, destaca a WWF. As famílias chefiadas por mulheres estão particularmente em risco de pobreza, devido às desigualdades existentes.

Das empresas que participaram da pesquisa, apenas 11% possuem um sistema de rastreamento integral da origem do cacau e das condições de trabalho associadas à produção. Em 2019, mais de 1,5 milhão de crianças estavam em situação de trabalho infantil no setor cacaueiro em Gana e na Costa do Marfim.

Grãos de cacau:  apenas 11% das empresas possuem um sistema de rastreamento integral da origem do cacau e das condições de trabalho.  — Foto: GettyImages

Grãos de cacau: apenas 11% das empresas possuem um sistema de rastreamento integral da origem do cacau e das condições de trabalho. — Foto: GettyImages

O movimento Chocolat Scoreboard é formado por 37 ONGS e universidade que pedem às empresas de chocolate que se comprometam com o combate ao trabalho infantil e com uma “renda vitalícia” para os produtores de cacau. Recentemente, um relatório da Oxfam mostrou que a renda líquida dos agricultores diminui cerca de 16% entre a safras 2019/20 e 2021/22. Mas o mercado de chocolate segue em expansão: em 2021, o setor fechou com uma receita de US$ 131,9 milhões, com projeções de crescimento de 4,5% ao ano.

Diante dessas constatações, o movimento também busca alertar os consumidores para o “greenwashing”, a velha prática da propaganda enganosa. Segundo o levantamento, as reivindicações de sustentabilidade feitas pelas empresas são, muitas vezes, definidas estritamente em referência aos seus próprios programas, que podem promover práticas sustentáveis, mas não se referem ao status real da produção do cacau ou necessariamente à melhoria das condições de vida e trabalho dos produtores rurais.

A metodologia de pontuação do relatório classifica as empresas com base em diferentes indicadores, como as técnicas agrícolas empregadas, os valores pagos aos agricultores, a gestão sobre o uso de pesticidas e outros produtos agroquímicos, a ocorrência de trabalho infantil, rastreabilidade e transparência da cadeia produtiva.

A empresa com melhor avaliação foi a Original Beans “por sua abordagem regenerativa para cultivar e fazer chocolate”, conforme mencionado no site do Chocolate Scorecard, e para a Tony’s Chocolonely, que busca buscar trazer mudanças estruturais para a cadeia de cacau. Por outro lado, General Mills e o Walmart receberam criticas por “sua falta de políticas públicas e compromisso com a aquisição de cacau”.

Marcas no meio da caminho, consideradas “ovos amarelos” (o relatório também classifica as empresas em “ovos verdes” para as mais bem pontuadas e “ovos vermelhos” para as que deixam a desejar), incluem Ben & Jerry’s, Nestlé, The Hershey Company e outras que estão “avançando” na implementação de políticas. Há ainda aquelas com pontuação geral “laranja”, como Starbucks (as linhas de produtos incluem o Classic Hot Chocolate, White Hot Chocolate e Iced Cappuccino) e Godiva Chocolatier, empresas que estão “começando” a adotar políticas positivas. Outras marcas produtoras e do varejo como Mondelez , Unilever, Tesco e Whole Foods, que se recusaram a participar da pesquisa deste ano, receberam a classificação de “ovo quebrado”.

Erradicando o desmatamento

Uma mulher prepara estacas para reflorestamento na região sudoeste da Costa do Marfim (maio de 2021).  — Foto: Issouf Sanogo/AFP

Uma mulher prepara estacas para reflorestamento na região sudoeste da Costa do Marfim (maio de 2021). — Foto: Issouf Sanogo/AFP

Há mudanças positivas ocorrendo também. Muitas das empresas participantes aderiram a iniciativas de colaboração, incluindo a  ‘Iniciativa Cacau & Floresta’ (CFI); Iniciativas para Cacau Sustentável (ISCOs); e a Retailer Chocolate Collaboration (RCC).

“Juntar-se a essas plataformas é um primeiro passo encorajador e necessário para a construção de soluções sustentáveis, mas as empresas devem ir além disso para compartilhar informações de fornecedores de forma transparente, iniciar proativamente ações coletivas no local e trabalhar em colaboração com atores locais e internacionais da sociedade civil”, defende a Mighty Earth, outra organização ambiental integrante do Chocolat Scoreboard.

A ONG também cobra que mais empresas estabeleçam políticas com prazo determinados para alcançar emissões líquidas de carbono zero nas cadeia de suprimentos, inclusive de fornecedores indiretos.