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Baleias vivas e baleias mortas: a maldição do sucesso de salvar uma espécie

Baleias vivas e baleias mortas: a maldição do sucesso de salvar uma espécie

O efeito colateral da saída da Jubarte da lista vermelha é que, a compensar em parte grandes taxas de nascimentos, há proporcionalmente uma taxa bastante grande de mortalidade natural

Encalhou uma baleia viva. E tenho uma péssima notícia: ela vai morrer. E mais: isso é uma ótima notícia para a conservação.

Não entendeu nada e ficou indignado? Pois é, essa é a reação da imensa maioria das pessoas quando nos deparamos com encalhes de baleias em nossa costa, um fenômeno cada vez mais regular devido ao enorme sucesso das ações de conservação. Quem não entende lhufas de Ecologia, nem de baleias, nem do histórico da batalha para salvar esses animais da extinção, fica urrando nas redes sociais ou nos botecos a cada baleia encalhada, em geral vociferando contra os projetos e as pessoas que trabalham na pesquisa e conservação desses animais de maneira séria e árdua, mas que, de um lado, não conseguiram atingir o nirvana de mentalizar para fazer seres de 40 toneladas voarem para longe da costa, e de outro, sabem que se trata de um processo natural e que, ainda que cada encalhe e morte nos pareça triste, deveria ser celebrado como uma grande conquista da conservação marinha no Brasil.

É mais ou menos fato aceito que seres vivos morrem. Baleias são seres vivos, ou assim acreditamos. No final da década de 1980, quando a caça indiscriminada estava levando a maioria das espécies à beira da extinção, restavam na população brasileira de baleias-jubarte algo em torno de 300 a 500 animais apenas, escondidos no Banco dos Abrolhos. Em 1988, um projeto criado por jovens malucos e visionários se dispôs a mudar o destino das jubartes brasileiras. Começaram a estudar a espécie, monitorar seus movimentos, propor medidas de conservação, participar da formulação de políticas públicas nacionais e globais para protegê-las. Em 2014, ao remover a espécie da Lista Vermelha de Espécies Ameaçadas de Extinção, o Ministério do Meio Ambiente premiou o Projeto Baleia Jubarte por seu papel fundamental na salvação da população brasileira de jubartes. Hoje, com 35 anos de esforços contínuos, estima-se que existam cerca de 30.000 animais na população reprodutiva brasileira.

O efeito colateral desse sucesso retumbante para a conservação é que, a compensar em parte grandes taxas de nascimentos de baleias, há proporcionalmente uma taxa bastante grande de mortalidade natural. Baleias envelhecem, padecem de enfermidades, enfrentam por vezes eventos de nutrição inadequada em suas áreas de alimentação, e como resultado disso… morrem.

Em condições normais, isso seria encarado com naturalidade. Uma baleia morta pode ser um evento triste, especialmente quando encalham vivas e demoram a morrer, nos fazendo sofrer junto com ela em seus últimos momentos. Mas expirada a vida, a carcaça de uma baleia não é desperdiçada no mundo natural. Ela contém uma enorme quantidade de biomassa, podendo alimentar diversos outros organismos, já seja numa praia em que aves, crustáceos e outros seres a aproveitam, ao boiar mar afora e alimentar tubarões e outros grandes peixes, ou no fundo marinho, onde especialmente a grandes profundidades uma “queda” de uma carcaça de baleia é uma benção para as comunidades de animais que vivem numa permanente escassez de comida.

O filhote de baleia jubarte foi encontrado na praia do Prado (BA) em avançado estado de decomposição e predação. Foto: Projeto Baleia Jubarte.

Mas não estamos em tempos normais. A humanidade ocupou as costas continentais e uma grande parte dela não está disposta a conviver com fenômenos naturais que não se adequem a suas visões românticas ou “higienizadas” da Natureza. Se a baleia morreu, bradam pela remoção imediata da carcaça (ante os olhares melancólicos das gaivotas e caranguejos que são privados do banquete). Agora, se ela demora a morrer, então bradam para que quem passou décadas salvando a espécie do desaparecimento imite o saudoso Mandrake e faça a baleia desencalhar num gesto hipnótico. Não rola, pessoal.

Aceitar que um animal majestoso e mitológico vai morrer inapelavelmente diante de nossos lacrimosos olhos é um exercício em estoicismo que muito poucos estão dispostos a encarar. Em vez disso, os projetos de conservação, os órgãos ambientais públicos e a própria imprensa são inundados por sugestões bizarras e reclamações iradas de quem “tem certeza de que daria pra fazer alguma coisa”. Mas em 99,9% das vezes não dá não, e mesmo quando dá, a baleia vai voltar pra costa e morrer, como aconteceu nesta semana com uma jovem jubarte encalhada no interior da Baía de Todos os Santos na Bahia. Ela podia nadar, mas vitimada por uma enfermidade anterior ao encalhe, voltava para as águas rasas. A baleia morre nesse caso da doença que a levou a encalhar, não do encalhe em si.

É claro que existem mortes de baleias causadas por ações humanas. Emalhamentos em redes de pesca e colisões com grandes embarcações vitimam muitas delas ao redor do mundo. Mas felizmente no Brasil essas são as exceções, não a regra. A maioria de nossas baleias encalhadas aparenta ter deixado este plano material por causas naturais mesmo. O Brasil tem uma excelente rede de registro de encalhes, composta principalmente por instituições sem fins lucrativos, cujos dados corroboram essa afirmação.

Essa é talvez a coluna mais óbvia e sem novidades que já escrevi para O Eco. Mas depois de uma semana às voltas com mais um de muitos encalhes e ouvindo pela enésima vez as mais rematadas bobagens e as piores barbaridades (“Usem uma draga! Coloquem um colchão de ar embaixo! Levantem com boias! Por que não puxam pela cauda? Já pediram para Yemanjá? Por que não erguem de helicóptero?”), achei necessário escrever e dizer neste espaço privilegiado, da maneira mais clara possível: onde há mais baleias vivas, haverá mais baleias mortas. Mais encalhes. Mais episódios tristes do ponto de vista de um indivíduo isolado, mas que nos lembram da alegria de termos salvo as baleias da extinção. O que fazer a respeito? Não encher a paciência. Entender o contexto. Ajudar as baleias no seu dia a dia ajudando o planeta como um todo. Apagar a luz ao sair de um lugar, fechar direito a torneira, usar menos plásticos e defender os projetos que fazem conservação marinha ao invés de ficar buzinando cada vez que uma baleia encalha. Vão encalhar mais. E vão morrer mais. E apesar de isso ser triste, enfim entender que no fundo é o efeito colateral de muita coisa boa.

José Truda Palazzo, Jr.

José Truda é jardineiro, escritor, consultor em meio ambiente especializado em conservação marinha e tratados internacionais, e indignado.