Prazer não é o principal motivo que leva nosso cérebro a pedir açúcar
Ah, o açúcar! Vilão das dietas, amigo dos quilos a mais e muito presente na vida do ser humano. Onde quer que estejamos, os doces atraem nossos olhos por sua beleza e fazem a boca ficar molhada. Há quem pense que o prazer de comer algo muito gostoso é o principal motivo para consumirmos açúcar. Mas não é bem assim, de acordo com uma pesquisa realizada na Universidade Yale, nos Estados Unidos. Segundo o estudo, nossa paixão pelo sabor doce tem, mais do que com o agrado ao paladar, a ver com a busca por nutrientes vitais.
Um grupo de cientistas, liderado pelo neurologista brasileiro Ivan de Araújo, demonstrou que a percepção do prazer (hedônica) e a da nutrição se dão por vias diferentes do sistema nervoso. Isto é, independentemente do prazer que sentimos ao saborear uma sobremesa, nosso organismo sinaliza a necessidade de comer açúcar. O trabalho foi publicado na revista Nature Neuroscience.
Já se sabia da existência das duas diferentes formas, hedônica e nutricional, de estímulo do consumo dos alimentos, mas o estudo descreve sua ocorrência em locais distintos do estriado, uma região do sistema nervoso que é fundamental para o processamento de recompensas. A porção inferior do sistema, conhecida como estriado ventral, possibilita a percepção do prazer proporcionada pelo sabor doce, enquanto a superior, chamada de estriado dorsal, é responsável por reconhecer o valor calórico e nutricional dos alimentos. A pesquisa mostra que os vertebrados preferem comer algo com gosto menos agradável se o alimento em questão for mais nutritivo, e que a capacidade de distinguir entre paladar e valor nutricional se deve às funções complementares desempenhadas pelas duas partes do estriado.
Para testar se as duas regiões cerebrais agiam em conjunto ou separadamente, a equipe realizou experimentos com camundongos, que sorviam de bebedouros duas soluções diferentes, uma de sabor doce (sucralose), e a outra amarga, de sabor aversivo (contendo benzoato de denatônio), ambas sem calorias. Para dissociar o sabor e o prazer do valor nutricional, os pesquisadores injetavam açúcar no estômago dos roedores.
Supreendentemente, a solução doce não fez tanto sucesso. Segundo o professor Ivan de Araújo, quando há informações contraditórias – sabor desagradável e infusão de açúcar intragástrico ou sabor agradável sem nenhuma infusão -, a reação do circuito dorsal se sobrepõe. “Descobrimos que os animais preferem consumir a solução amarga quando pareada com açúcar intragástrico, em vez da solução doce sem valor nutricional”, conta ele.
Dopamina no circuito
O estudo avaliou, a partir de técnicas de estímulo e inativação de neurônios das duas regiões (ventral e dorsal), a liberação de dopamina – o neurotransmissor ligado à sensação de prazer – no cérebro dos roedores após o consumo das soluções. Os resultados mostraram que há mais circulação de dopamina no circuito ventral (função hedônica) quando os camundongos ingerem a bebida doce, por ter o gosto mais agradável. A liberação de dopamina no circuito dorsal, por outro lado, depende do valor nutricional do alimento consumido, independentemente do sabor ser agradável ou não.
Trata-se de uma solução da natureza para assegurar os níveis de energia necessários para o funcionamento do cérebro: como também são responsáveis por regular movimentos do corpo, neurônios dopaminérgicos, que carregam a dopamina, geram comportamento ingestivo quando os nutrientes corretos são ingeridos, mesmo que não haja estímulo ao paladar. Assegura-se, desta forma, o início do processo de busca por estes nutrientes.
Para os autores do artigo, a existência de uma área do cérebro especializada em detectar o valor nutricional dos alimentos, presente em diversas espécies animais, é uma importante ferramenta evolutiva. “Os estoques de glicose, principal fonte de energia do sistema nervoso, são relativamente baixos no organismo se comparados à gordura, por exemplo”, ressalta Araújo.
Ainda não foram feitos testes em humanos, por conta da dificuldade de controlar as condições experimentais, mas os pesquisadores acreditam que o cérebro de nossa espécie atue da mesma maneira. “O sistema estriado é bem desenvolvido evolutivamente [nos animais]. Dados da literatura médica mostram que até invertebrados, como moscas alteradas geneticamente para não sentirem o sabor doce, possuem o mesmo mecanismo. Se as moscas e os camundongos têm, provavelmente os humanos também”, explica a neurobióloga Tatiana Lima Ferreira, do Centro de Matemática, Computação e Cognição da Universidade Federal do ABC, colaboradora do estudo.
Tendência evolutiva
“O estudo identifica a predominância dos circuitos de valor calórico aos de valor hedônico. Se a tendência for verificada em humanos, será mais uma confirmação da nossa tendência evolutiva de buscar nutrientes que possibilitam ao corpo armazenar energia”, comenta a neurocientista Penha Cristina Barradas, do Laboratório de Neurobiologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. “Os seres vivos, em geral, são programados para aproveitar o máximo possível do alimento, guardando energia para órgãos nobres (como o cérebro) e momentos de maior necessidade”, destaca a neurocientista.