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Além de peixe e camarão, últimos pescadores de Copacabana tiram do mar carioca cabelo e plástico

Além de peixe e camarão, últimos pescadores de Copacabana tiram do mar carioca cabelo e plástico

Pesquisa inédita realizada na colônia de pescadores mais tradicional do município mostra impactos sociais e econômicos da poluição causada por detritos do cotidiano no mar

No cantinho da praia de Copacabana, no Rio de Janeiro, a Colônia de Pescadores Z13 comemorou seus 100 anos em 2023. O grupo resiste trabalhando em uma ocupação tradicional e artesanal de pesca, acompanhando de camarote as transformações de um dos principais cartões postais brasileiros. A rotina é a mesma todos os dias: sempre que as condições do mar permitem, buscam seus pescados e então comercializam corvina, pescada, anchova e marimbás fresquinhos, em bancas perto da areia, direto para o cliente.

Mas o cenário de barcos e redes inclui também uma poluição pouco mapeada e aparentemente inofensiva: fios de cabelo, pequenos pedaços de plástico, fio dental, algodão e outros itens de higiene pessoal que ficam enroscados nas redes de pesca. “Esses resíduos, conhecidos por ‘cabelo de cano’ são pequenos e formam um emaranhado, muitas vezes misturado com matéria orgânica, então é difícil retirá-los das redes. No mar, a trama fica aparente aos peixes, espantando cardumes”, dizem Maíra Fernandes e Mariana Andrade, oceanógrafas da empresa Bloom Ocean.

Elas realizaram, em parceria com o Projeto Ilhas do Rio, uma pesquisa inédita sobre os impactos sociais e econômicos da poluição de lixo doméstico no trabalho dos pescadores. Entre dezembro de 2022 e junho de 2023, acompanharam os 12 profissionais de Copacabana que utilizam a rede para pescar.

Redes e sacos de lixo na colônia Z13 — Foto: Bloom Ocean
Redes e sacos de lixo na colônia Z13 — Foto: Bloom Ocean

A hipótese inicial da equipe era de que o plástico seria o resíduo que mais prejudicava os pescadores, mas durante as entrevistas verificaram que não era bem assim. Enquanto que sacolas ou embalagens colhidas pelas redes de pesca exigem 3 ou 4 horas para serem retiradas – o que já não é pouco -, no caso dos resíduos menores o pescador leva às vezes dias para soltá-los ou, pior, elas rasgam ou danificam definitivamente suas redes.

“Os efeitos sociais e econômicos dessa poluição são enormes. Entre os impactos, ao encontrar grande volume de sujeira na rede, o pescador diz ficar cansado, estressado e triste, com grande desgaste físico e mental. Ao invés de estar no mar, ou mesmo descansando, precisa se ocupar em limpar ou recuperar as redes, que são seu instrumento de trabalho. Além do desânimo, existe um prejuízo grande, de até 12 mil reais para comprar novos equipamentos, o que pode causar a descontinuidade de sua atividade pesqueira”, contam as pesquisadoras.

Para Aline Aguiar, coordenadora científica do projeto Ilhas do Rio, as comunidades tradicionais e os pescadores artesanais são parceiros da conservação, porque eles dependem diretamente do mar saudável. “A centenária Colônia Z13 vê em Copacabana as mudanças no mar e na cidade, com os efeitos da urbanização e poluição. É essencial ouvir desses pescadores sua percepção do problema para pensar melhorias no oceano, além de favorecer qualidade de vida a essas comunidades e manutenção de sua atividade tradicional. Se para os cidadãos comuns a poluição do cabelo de cano pode escapar aos olhos, para os pescadores ela afeta diretamente sua atividade”.

Colônia de pescadores Z13, em Copacabana. — Foto: Um Só Planeta
Colônia de pescadores Z13, em Copacabana. — Foto: Um Só Planeta

O dia do pescador de Copacabana

João Manoel Pereira Rebouças, o Seu Manel, é presidente da colônia de pescadores Z13, que reúne os cerca de 600 trabalhadores que atuam em um grande trecho do município fluminense: do Pontal, junto ao Recreio dos Bandeirantes, até Copacabana, incluindo as lagoas de Jacarepaguá e Rodrigo de Freitas. Na sede da colônia, em Copacabana, há 20 barcos e por volta de 55 pescadores.

“A quantidade de pescadores vem diminuindo brutalmente por muitas razões. Em todo o território da Z13 tínhamos mais de 1000 profissionais em atividade por volta de 2005. As lagoas, por exemplo, sofrem com poluição nos últimos 30 anos, e no mar, a pesca predatória desestimula a renovação de pescadores de pequeno porte”, conta Manel, cearense morador do Rio desde 1993, que pertence a uma família de pescadores e realiza essa atividade há 50 anos. Ele diz que há muitas ameaças para a colônia há décadas, como a construção do Forte de Copacabana, a ampliação da avenida beira-mar, além de pressões econômicas e sociais. Mesmo assim, o grupo vem resistindo a estes e adaptando seu trabalho. “Os cardumes não chegam mais na beira da praia, então precisamos percorrer uma distância de 5 a 18 quilômetros da costa de Copacabana para encontrar os produtos”.

De onde vem essa poluição?

Perto da área de atuação dos pescadores da colônia de Copacabana, um emissário submarino da praia de Ipanema construído na década de 1970 é apontado pelas pesquisadoras e pescadores como o mais provável responsável pela origem do cabelo de cano. O emissário é a linha de chegada de um sistema de coleta e tratamento do esgoto dos bairros da Zona Sul da capital fluminense. Há uma tubulação principal, o chamado interceptor oceânico, que liga o bairro da Glória a Copacabana, em um duto de nove quilômetros, que depois segue para o emissário de Ipanema, despejando o esgoto parcialmente tratado a quatro quilômetros da costa. “As pessoas jogam cabelo e seus itens de higiene pessoal pela pia e pelo vaso sanitário de forma indevida e esses resíduos não recebem a destinação adequada, indo para o mar junto com o esgoto e parando na rede dos pescadores. As características do lixo doméstico que se prende na rede do pescador e os locais em que são coletados nos faz estimar que tem origem no emissário”, diz Aline.

Sinval Andrade, diretor superintendente no Rio de Janeiro da concessionária responsável pelo saneamento, a Águas do Rio, discorda. Diz que esses resíduos não são provenientes dos despejos atuais do emissário, mas que devem vir de outras praias, canais, rios e da Baía de Guanabara. Isso porque desde quando a empresa iniciou o trabalho de concessão, há dois anos, realizaram diversas melhorias estruturais no saneamento da cidade. “Houve um importante aprimoramento no interceptor oceânico e diversas obras de manutenção: trocamos as grades das estações elevatórias de esgoto para que partículas maiores não entrem no emissário, mudamos os filtros, realizamos a limpeza das tubulações e a correta ligação de canos para que o esgoto dos bairros seja direcionado corretamente para os difusores para poluentes, realizando um tratamento do esgoto”, afirma.

Próximos passos: educação e ações concretas

Além da importância de constantes melhorias na infraestrutura da coleta e tratamento de esgoto, Aline reforça que campanhas de educação para conscientização dos cidadãos e políticas são essenciais para que as pessoas joguem os resíduos sólidos nas lixeiras adequadas, e não nas pias e vasos sanitários. “Os pescadores se queixam há tempos da presença do cabelo de cano em suas redes, mas ter dados sistematizados sobre o assunto colabora para que o poder público, os responsáveis pelo saneamento e a sociedade tenham acesso a informações e possam agir”. A ideia é reforçada pela pesquisadora Mariana: “Para a situação mudar de forma significativa, todos vão precisar atuar juntos, mostrar engajamento e vontade política”.

Seu Manel segue na batalha para organizar a colônia de pescadores e enfrentar as dificuldades que se apresentam. Mesmo assim, se mantém orgulhoso de sua atividade profissional: “Posso dizer que sou um dos pescadores mais felizes deste país, por estar nesta colônia e num lugar tão frenético como Copacabana, que recebe a visita de pessoas de todo o mundo. Nada mais queremos do que trabalhar, pescar e fornecer comida, para as pessoas mais simples e para as mais famosas. Essa é a nossa bandeira”.