A inocência perdida
Esta semana, ouvi de alguém muito próximo, sobre os rituais de passagem a que era submetido na adolescência (tiraram sua roupa, tapas, e outras coisas); difíceis de ouvir depois de tantos anos. O silêncio era a senha de pertencimento ao grupo, e, por mais atentas que nós mães estivéssemos, éramos ludibriadas pela expertise desses meninos. E eu fiquei a lembrar de um filme que me marcou – Um homem chamado cavalo, (Direção de Elliot Silverstein 1970) e os rituais selvagens de punição, auto flagelo, sofrimento, pelo qual um homem passava.
Para em seguida, assistir na TV, ao ataque de um grupo de estudantes de medicina da UNISA e de outras universidades, que invadiram uma quadra de esportes correndo nus e simulando masturbação durante um jogo de vôlei feminino. A filósofa Márcia Tiburi postou no Instagram, “Micro Pênis”, falando dessa cena patética, de “parafilia”, tara de chocar o olhar do outro, prepotência sexual, cultura do estupro, ódio às mulheres, delírio patriarcal e tóxico. Ainda nos tempos das cavernas.
Tudo isso me passou na cabeça feito um caleidoscópio, quando assisti ao filme Close, (Bélgica, 2023, Direção Lukas Dhont). Desse diretor, já tinha assistido ao seu primeiro filme Girl, e fiquei encantada com a trama, a delicadeza do tema – uma garota trans que sonhava em ser bailarina.
Close é sobre a amizade de dois garotos: Léo (Eden Dambrine) e Rémi (Gustav de Waele), amizade essa marcada pela inocência e liberdade de se tocarem, e de terem uma intimidade na felicidade das brincadeiras por entre os campos floridos da primavera belga. Mas, quando os dois mudam de escola, essa proximidade logo estabelece ruídos na turma que estranha o “casal”. Léo se ressente e se afasta; Rémi não suporta a rejeição. Como o afeto incomoda a todos! Lembro que, no clássico 1984, de George Orwell, a ameaça maior ao sistema ditatorial do Big Brother, é justamente o afeto.
Close, que em inglês significa íntimo, perto, mas também, fechar, encerrar. O filme foi indicado ao Oscar 2023, como melhor filme estrangeiro. Que beleza a inocência de dois jovens que se adoram e juntos descobrem a amizade. A sociedade perversa destrói toda e qualquer demonstração de afeto fora da ordem cis/hetero/normativa e patriarcal; e as cenas nos campos de flores! E os olhares! E a infinita delicadeza desses dois e do filme. Fiquei dois dias a pensar na violência do mundo. Na rejeição. Na dor. E na força da transcendência. Amo filme europeu e o seu ritmo lento. A câmera nos ângulos fúteis. O cotidiano da domesticidade dos dias. O silêncio. E, de novo, a força dramática de se falar de tudo mostrando tão pouco. Ou muito. Encantada! Filmes tristes, lindos e fortes. Eu gosto.
Com o descompasso entre os dois amigos, tudo que era idílico e amoroso se desestabiliza e um acontecimento trágico irá marcar os acontecimentos. Nada mais violento que o silêncio. E a rejeição. O filme todo se sustenta com o não dito. Os olhares. Esses atores maravilhosos que lançam sentimentos pelos olhos, boca, pele e todas as reações, tanto na vida familiar, como nas brincadeiras ao vento. O gesto e os movimentos corporais falam por si. A agressividade, raiva, e vergonha, sentimentos orgânicos dessa faixa etária, e a incapacidade de organizá-los e demonstrá-los são levados ao distanciamento e supressão, e as lacunas se instalam, fazendo com que nós, os espectadores, possamos preencher esses vazios de dor e sofrimento. O trabalho de Léo, na plantação de flores, que recurso esse setting! Quanta beleza e delicadeza contrastando com a brutalidade a que esses dois foram submetidos. A primavera, a estação mais linda, a que explode em cores, de que brota a beleza contrastando com toda a violência da nossa incapacidade de acolher sentimentos iniciantes da vida inocente.
As dores da adolescência. A brutalidade dos acontecimentos, a irreversibilidade dos atos e rejeições desse filme belíssimo,me fizeram pensar sobre a violência dos homens que, a cada dia cresce, se aperfeiçoa e explode nas nossas vidas. Sem dó nem primavera nenhuma.
No filme, a emoção maior veio com a capacidade que tem a vida de transformação e transcendência, no caso a vida do personagem Léo que, mergulhado na dor através do jogo, igualmente violento, do Hockey, o seu escape, consegue superar a sua tragédia íntima, levando-o assim à vida adulta e ao portal transformador do perdão.