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Lembranças e sensações

Lembranças e sensações

Nesta semana, revendo alguns retratos no computador, fiquei com o peito recheado de saudade. As fotografias se referem a última atividade de escavação arqueológica que participei, momento ímpar que me deixou mais leve, mais sereno, mais confiante nas coisas e no futuro. Isso foi um pouco antes dessa famigerada pandemia, no mês de São João de 2018. Integrei a equipe do Professor Juvandi de Souza Santos, do Laboratório de Arqueologia e Paleontologia da UEPB que pesquisava no litoral parahybano.

A magia da descoberta é algo que sempre me comove, vestígios dando vida a histórias, sem falar no lugar em que eu estava, na Atalaia do Mirante, soberba construção que fita todo o estuário do Rio Parahyba e proporciona a quem ali está a observar todo aquele horizonte.

A construção remonta o final do século XVI, comecinho da colonização de nossas terras, e consiste em uma estrutura militar de observação de território, tão importante quanto a artilharia onde as bocas dos canhões ardiam com as balas flamejantes direcionadas aos inimigos. A Atalaia está em um lugar muito privilegiado para o fim a que se propõe, num outeiro estratégico na região conhecida como Forte Velho, distrito de Livramento em Santa Rita. Em Forte Velho tivemos a primeira alcaidaria (estrutura administrativa) da Capitania da Parahyba, diferente do que muitos pensam, que seria na futura capital. Até acredito que essa experiência possibilitou construir a Cidade Real de Nossa Senhora das Neves mais para o interior, vendo o risco que seria ter a povoação tão perto da foz do rio. Mais recuada, no rio Sanhauá, a cidade teria um favorecimento melhor para a defesa, e assim foi feito!

O estuário do Rio Parahyba a partir da Atalaia

Chegamos no início de uma manhã de segunda-feira, temperatura alta, clima extremamente úmido, canavieiro, nauseante. Enquanto os companheiros iniciavam a montagem de todo o material, dei início a uma série de fotos e deles me distanciei um pouco. Fui entender o outeiro e as sucessivas mudanças nesses últimos quatro séculos, fitei calmamente o rio, o estuário, o mar, me aproximei da construção e não contive a emoção. Toquei naquelas paredes, pedras irregulares inteligentemente sobrepostas com uma argamassa antiquíssima oriunda de cal e gordura de baleia possivelmente, toquei como se toca algo precioso (e é!), e não n’uma mera construção em pedra. Encostado em sua parede espiei o rio e me senti muito feliz em ter o privilégio de sentir aquela emoção, nem o título de mestre em História me causou tanta comoção, mas esse sentimento justifica ter ido buscar nos bancos universitários uma formação que desse sentido a minha vida.

Um dos colegas, controverso, olhou para mim e não sabia se aquele líquido jorrado entre a careca, os óculos e o nariz era suor ou choro, era senão tudo junto. A brisa que uivava ao passar na mata dava alívio àquele orgasmo intelectual, me trazendo de volta ao presente, deixando para trás tal mundo paralelo e imaginário onde viajei no tempo e vi ali o cotidiano de sentinelas atentos a cada vela a tremular ao mar de dia e a cada luz a noite… despertando as defesas ora com fumaça, ora com fogo, clima de tensão que envolvia indígenas, portugueses, espanhóis, franceses, holandeses em pelejas fundantes dos destinos destas terras.

Prof. Juvandi e a equipe do LABAP/UEPB

A escavação começa, técnica rebuscada da ciência arqueológica para o retiro de cada camada de terra, sabendo que ela jamais terá aquela forma novamente. A busca na poeira dos tempos por vestígios antiquíssimos: cerâmica, louça, faiança, cada uma contando a sua própria história e a de seu tempo. Camadas estratigráficas, terras de cores diferentes, indícios de antigos revolvimentos de solos e a constatação do intenso movimento no lugar posterior ao momento da conquista. Escavações antigas causadas por antigas plantações e por curiosos sepultaram (em outros tempos) outros vestígios que não chegaram ao presente, páginas de uma história que são rasgadas sem ao menos serem devidamente lidas. Mas é assim, uma escavação arqueológica possibilita também demonstrar a profanação de monumentos históricos que, a cada dia que passa, veem menos possibilidades de ter sua história compreendida.

Par, colher, pincel, e o passado sendo descortinado em nossas mãos em intensas e profundas sensações. Belas lembranças.

Publicado na coluna ‘Crônica em destaque’ no Jornal A União de 11 de dezembro de 2021.