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Uma nova realidade da pandemia no Brasil: animais selvagens infectados com coronavírus

Uma nova realidade da pandemia no Brasil: animais selvagens infectados com coronavírus

Em entrevista ao GLOBO, o veterinário Alexander Biondo explica que o alastramento mostra que a vigilância tem que se intensificar para evitar o surgimento de novas cepas

O tamanduá-bandeira, o peixe-boi marinho e uma espécie de macaco do Cerrado e da Amazônia se somam à lista de animais com infecção confirmada pelo Sars-CoV-2. A infecção de animais das três espécies no Brasil revela que o coronavírus se espalhou no país de forma ainda mais espantosa do que a estimada, chegando a espécies selvagens, sem contato muito próximo do ser humano. O alastramento entre animais evidencia que a vigilância da pandemia precisa se intensificar e ampliar para evitar que o vírus encontre novos reservatórios e hospedeiros que propiciem o surgimento de surtos e variantes, alerta Alexander Biondo, professor titular de zoonoses do Departamento de Medicina Veterinária da Universidade Federal do Paraná (UFPR).

Pioneiro na identificação de pets infectados pelo Sars-CoV-2 no Brasil, Biondo liderou o PetCovid-19, o maior estudo já realizado no país para investigar a Covid-19 em cães e gatos e seus desdobramentos para a saúde humana. Ele coordena na UFPR um projeto que almeja vacinar contra a Covid-19 cerca de 80 animais silvestres, numa parceria com o Zoológico Municipal de Curitiba.

Como foi a descoberta do tamanduá-bandeira e do macaco infectados?

Ambas as infecções foram identificadas no Hospital Veterinário da Universidade Federal do Mato Grosso, pela equipe da professora Valeria Dutra. O hospital atende a animais silvestres e tanto o macaco (um sangui-de-cauda-preta Mico melanurus) quanto o tamanduá foram atropelados na região de Cuiabá e encaminhados para lá. A infecção pelo Sars-CoV-2 foi detectada pelo teste de RT-PCR, que se tornou rotina para os animais atendidos lá.

Esses animais morreram de Covid-19?

Não e não há sinais da doença. Eles morreram em função das lesões sofridas pelo atropelamento. Os casos aconteceram em janeiro deste ano. Só sabemos que foram infectados, mas não sabemos como nem quando contraíram o vírus, já que eram de espécies silvestres, sem contato com o ser humano.

E os peixes-boi?

A infecção de peixes-boi foi constatada em animais monitorados pelo Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Mamíferos Aquáticos, do ICMBio, na Ilha de Itamaracá, em Pernambuco. Dois animais positivaram para o Sars-COV-2 no exame de RT-PCR, mas eles não apresentaram sintomas. Os casos são de novembro de 2020, mas a publicação científica só ocorreu este ano.

O macaco, o tamanduá e o peixe-boi ainda nem fazem parte da lista da Organização Mundial para a Saúde Animal (OIE), que relaciona 20 espécies em 35 países, incluindo o Brasil. O quão disseminado o coronavírus Sars-CoV-2 está entre os animais?

Provavelmente, ainda muito mais do que identificamos. A gente só não encontra em mais espécies porque não procura. Veja que o tamanduá e o macaco foram descobertos por acaso, porque foram atropelados e atendidos numa instituição de pesquisa.

E o que esse espalhamento significa?

Ele mostra a impressionante capacidade de infecção desse coronavírus. Há desdobramentos, além do risco para a saúde animal. Trabalhamos com o conceito de saúde única. Não existe saúde humana sem saúde animal. Animais podem se tornar reservatórios e transmitir a doenças para seres humanos. Na Europa, houve casos prováveis de infecção de seres humanos em fazendas de visons que, por sua vez, contraíram o vírus de seus tratadores. Aumenta também o risco de surgimento de novas variantes e surtos.

E qual o impacto na investigação sobre a origem da Covid-19?

A mais provável origem do Sars-CoV-2 é que ele veio de morcegos e, após sofrer mutações num hospedeiro intermediário, passou a atacar seres humanos. Mas, com tantas espécies afetadas, pode ser que jamais descubramos qual animal serviu de hospedeiro intermediário. E essa é uma informação fundamental para compreender como o vírus evolui e se adapta ao ser humano.

Qual o risco do Sars-CoV-2 para os animais?

Se houver transmissão de animal para animal, algumas espécies serão colocadas em risco. Por enquanto, o risco de transmissão permanece baixo.

E qual a vulnerabilidade dos animais?

Sabemos pouco sobre isso. Ela varia de uma espécie para outra. Cães e gatos podem ser infectados por meio do contato com o tutor. Nosso estudo na UFPR mostrou que cerca de 15% dos animais que tiveram contato com um tutor positivo foram infectados. Mas não há qualquer evidência de transmissão de cães e gatos para humanos. E tampouco casos de morte desses animais no Brasil e somente alguns relatos não confirmados no mundo. Sabemos, porém, que os cães parecem ser ainda mais resistentes do que os gatos.

E o risco para os animais de criação?

Também parece muito pequeno. Os suínos são extremamente resistentes e os bovinos também se mostram pouco suscetíveis. As aves também não se mostram vulneráveis.

E nos animais silvestres?

Há uma grande variação. O gato doméstico não é muito suscetível, mas espécies de felinos selvagens, como o tigre, o leão e, principalmente, o leopardo-da-neve são vulneráveis, inclusive morrem de Covid-19. Mas nada sabemos sobre nossas onças.

E os primatas não-humanos?

Também varia entre espécies. Aparentemente, podem contrair o Sars-CoV-2, mas não desenvolvem a Covid-19.

Quais as espécies mais vulneráveis?

Parecem ser os mustelídeos, grupo que inclui lontras, ariranhas, iraras, furões e o vison. Eles não apenas contraem o vírus quanto podem morrer de Covid-19.

Outros animais causam preocupação?

Sim. Há fortes indícios de que os veados-de-rabo-branco, comuns nos EUA, contraem com facilidade o vírus, centenas testaram positivo. Porém, não adoecem e sequer há evidência de que possam transmitir.

Como proteger os animais?

Da mesma forma que protegemos os seres humanos, com vacinas. A imunização é fundamental para proteger, sobretudo, a nossa fauna silvestre. Precisamos estar prontos para qualquer surto e não passivamente esperar que aconteça.

Por que a silvestre?

Porque são os animais selvagens que têm se mostrado vulneráveis. Cães e gatos podem ser eventualmente infectados, mas não são vulneráveis à Covid-19 nem há quaisquer sinais que transmitam o vírus a seres humanos. O mesmo pode ser dito, ao menos por ora, sobre os animais de criação. Defendemos a vacinação em zoos porque neles os animais silvestres estão em contato com pessoas e podemos avaliar controladamente a segurança e a eficiência da imunização.

Como é a vacina experimental que está sendo testada em zoos do EUA e do Chile?

Ela foi desenvolvida pelo laboratório americano Zoetis, que já produz vacinas contra outros coronavírus para animais. Ela pode ser aplicada em todas as espécies e tem se mostrado segura, mas precisamos avaliar sua inocuidade no Brasil.

Como será a vacinação no Brasil?

Temos um projeto conjunto com o zoo de Curitiba, de vacinar inicialmente 80 animais de três grupos: primatas não humanos (porque são os mais próximos do homem), mustelídeos (são os mais vulneráveis) e felinos (alguns se mostram suscetíveis). O Ministério da Agricultura (Mapa) já aprovou o uso experimental, mas o zoo ainda analisa questões de segurança.

Qual lição tiramos?

A vigilância em animais precisa ser regular e coordenada. Precisamos de busca ativa, monitoramento em todo o país. Principalmente em espécies estratégicas, como morcegos, animais silvestres de grupos vulneráveis, animais domésticos e de criação. É um perigo muito grande arriscar deixar o vírus criar reservatórios silvestres.