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TRANSGRESSÃO – Acreditamos que a globalização traria maior possibilidade de cooperação entre os desiguais e diferentes

TRANSGRESSÃO – Acreditamos que a globalização traria maior possibilidade de cooperação entre os desiguais e diferentes

E jogamos prematuramente fora as ferramentas como luta de classes, crenças religiosas limitadoras, nacionalismos e outras ideologias do mesmo naipe por considerá-las ultrapassadas.

Fazer 70 anos nos dá perspectiva. Para alguma coisa servem nossas rugas e nossa bagagem de vida.

Vou notando, é sempre um aprendizado, que o meu repertório sobre transgressões aumenta a cada ano. O que não significa maior compreensão. Às vezes me pego em perplexidade, apenas perplexidade.

Vejo diariamente em Gaza (que passa a representar todos os outros conflitos em curso) limites de crueldade serem ultrapassados todos os dias.

Lá e em outras dezenas, talvez centenas de situações, o ser humano está revelando um lado demoníaco que supunhamos ser um ‘desvio padrão’ e não a regra.

Acreditávamos que a política não era a brutalidade, ao contrário, sua ausência a provocava.

Este século XX continha para nós, humanistas e ambientalistas promessas que não se cumpriram.

Havia, nas gerações da new age global- pós-guerra aquela mística da ‘Era de Aquarius’ que decerraria suas primeiras cortinas na passagem de 2000.

A utopia dessa visão era o Império do amor. Uma bonança ampliada, um súbito entendimento do papel da vida como um todo neste planeta a ser cuidado.

Nós, que tanto amávamos a Revolução e que nunca fizemos pão com trigo integral no forno da comunidade, não tínhamos essa inspiração milenarista, devo confessar.

Mas acreditamos que a globalização traria maior possibilidade de cooperação entre os desiguais e diferentes. E jogamos prematuramente fora as ferramentas como luta de classes, crenças religiosas limitadoras, nacionalismos e outras ideologias do mesmo naipe por considerá-las ultrapassadas.

Acreditamos na força civilizadora da ONU, nas intenções de degelo entre as potências da Guerra Fria e numa nova ordem global que poderia combinar práticas políticas neoliberais com outras que grosseiramente chamamos de populistas ou algo semelhante.

Acreditamos no multilateralismo como a nova doutrina diplomática de conversa entre os países e seus interesses que deixariam de ser puramente econômicos – ou economicistas, para fazer valer uma nova cultura onde a diversidade seria a pedra fundamental.

E como lastro dessa visão de futuro veio a chave mágica do desenvolvimento sustentável e a prestigiosa e crescente agenda ambiental, desde 1992.

Há um ditado galhofeiro de que as expectativas são que nem farofa: qualquer vento dispersa o que parecia sólido ou cimentado com manteiga em milhares de pequenos grãos, solitários e não solidários, frágeis, portanto.

Sim, em menos de três décadas desde que os emblemáticos 2000 brilharam nos céus do réveillon de Copacabana, na Praça Vermelha, nos mares da China, ou na gravitação hipnótica da maçã americana, todas as nossas esperanças têm se esfarelado.

Aquela bonança, aquele amor que a humanidade emanaria, aquela consciência planetária, tudo pareceu de repente uma bolha de sabão que sopramos ingênuos na infância: bela e efêmera.

Conectados. Super conectados mas não irmanados, estamos reduzidos a uma sociedade de atônitos.

Não vou enumerar aqui todos os nossos desenganos. São muitos e fatais para a ordem do mundo que conhecemos.

Dois deles são mesmo fatais como o adjetivo anuncia: o primeiro é a erosão da adesão aos valores/ ideais democráticos e a perda de confiança nos mecanismos globais para conter o vociferante novo imperador do Ocidente – que se acha possuidor da ‘pica das galáxias – Donald Trump.

O segundo é a perda veloz do gás que a utopia do desenvolvimento sustentável tinha até uma década atrás: vem murchando e ganhando um cenário de balão à deriva, principalmente no que diz respeito ao seu papel no nosso presente e no futuro próximo.

O terceiro ainda é um fantasma, mas exerce um efeito devastador tanto em nossa saúde mental, quanto em nossas decisões de curto e médio prazos.

Tudo parece encurtado, diminuído e volátil na mesa do xadrez político do agora.

Como ambientalista, como residente num país que vai realizar a COP 30, o mais ambicioso evento da agenda ambiental do Planeta, estou igual a muitos: tensa e temendo pelo fracasso da reunião.

Os dedos ágeis e nefastos dos Estados Unidos já melaram o Tratado Global contra a poluição Plástica em Genebra, e a retirada daquele país do Acordo de Paris não deixa dúvidas de que fará pressão para sabotar qualquer medida vinculativa que saia da reunião de movembro no Brasil.

Ainda assim, não dá para simplesmente olhar para a nebulosidade ou escuridão e tremer.

Há o que temer, é claro, mas há espaços para a resistência e para avançar nas nossas questões sem deixar de lembrar que a estratégia de colocar a agenda das mudanças climáticas no mainstream da política global, na tomada de decisão dos líderes governamentais, pode sofrer um revés, mas no longo prazo será vencedora.

O negacionismo ou o ceticismo ambiental de Trump e seus seguidores, não têm poder para deter as chuvas torrenciais, as nevasca devastadoras, os megaincendios, nem as crises nos sistemas vitais que afetarão o mapa do suprimento de alimentos no mundo.

Contra fatos pode haver narrativas, mas contra a consequências, cedo ou tarde, a racionalidade ou o instinto de sobrevivência falarão mais alto.

Se você é militante, ou se considera um cidadão consciente, se você se importa, adie a ressaca moral, afie seu discurso ético, aja em grupo ou sozinho, cave trincheiras onde achar que deve.

Participe das bolhas utópicas sem remorso.

Defenda a COP e defenda o Brasil.

O cenário requer coragem. E não estou falando de heroísmo.

Apenas não se deixe derrotar por aquilo que parece imenso ou irresistível.

Há muitos como você, como nós, que recusam a paralisia do medo.

Samyra Crespo é ambientalista, coordenou a série de pesquisas nacionais intitulada “O que o Brasileiro pensa do Meio Ambiente e do Desenvolvimento Sustentável” (1992-2012). Foi uma das coordenadoras do Documento Temático Cidades Sustentáveis da Agenda 21 Brasileira, 2002. Pesquisadora sênior do Museu de Astronomia e Ciências Afins/RJ. Ex-Gestora do Jardim Botânico do Rio de Janeiro.