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Sucata pós-moderna: como o mundo (não) cuida do seu lixo eletrônico e como pode melhorar

Sucata pós-moderna: como o mundo (não) cuida do seu lixo eletrônico e como pode melhorar

Em um planeta plugado na tomada, geração deste tipo de resíduo aumenta cinco vezes mais rápido do que a reciclagem. Mas há bons exemplos de gestão

O dia 17 de maio foi instituído pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência, e a Cultura (Unesco) como o Dia Mundial da Reciclagem, para estimular a reflexão sobre a importância do descarte correto dos itens de consumo. Além de plástico, vidro, alumínio e papel, há um tipo de resíduo que pode ser reciclado, mas que ainda é esquecido: o lixo eletrônico, que abarca qualquer produto que contenha plugue ou bateria.

Em um planeta cada vez mais ligado na tomada, a geração deste tipo de resíduo, que contém compostos tóxicos, está aumentando cinco vezes mais rápido do que a sua reciclagem documentada, segundo o relatório Global E-waste Monitor (GEM) 2024 produzido pelo Instituto das Nações Unidas para Treinamento e Pesquisa (Unitar) e a União Internacional de Telecomunicações (UIT), também da ONU.

“Desde televisões descartadas até telefones velhos, uma enorme quantidade de lixo eletrônico é gerada em todo o mundo. As pesquisas mais recentes mostram que o desafio global só vai crescer”, analisa Cosmas Luckyson Zavazava, diretor do Departamento de Desenvolvimento de Telecomunicações da UIT. Atualmente, menos de metade do mundo implementa e aplica abordagens para gerir o problema, o que torna urgente a criação de regulamentações sólidas para aumentar a coleta e reciclagem.

Pelos dados do levantamento, só em 2022, foram geradas 62 milhões de toneladas de lixo eletrônico, volume que encheria nada menos do que 1,55 milhão de caminhões de 40 toneladas – o suficiente para formar a linha que circunda o Equador – e o equivalente ao peso de 107 mil das maiores e mais pesadas aeronaves de passageiros do mundo. Entretanto, apenas 22,3% (14 milhões de toneladas) foi documentada como tendo sido devidamente recolhida e reciclada, principalmente em aterros.

A geração anual de lixo eletrônico, em todo o mundo, está aumentando 2,6 milhões de toneladas por ano e caminhando para atingir 82 milhões de toneladas até 2030, um aumento adicional de 33% em relação ao valor de 2022. O estudo também traz uma previsão preocupante: a taxa documentada de coleta caindo para 20% nos próximos seis anos, devido à diferença cada vez maior nos esforços de reciclagem em relação ao crescimento da geração de lixo eletrônico globalmente. É uma matemática que não fecha.

Dentre os desafios que contribuem para o alargamento do fosso, o Global E-waste Monitor (GEM) destaca o progresso tecnológico, o aumento do consumo, as opções de reparação de equipamentos limitadas (“tudo é quebrou, joga fora”) , os ciclos de vida mais curtos dos produtos, a crescente eletrificação da sociedade, as deficiências de gestão do lixo e infraestrutura inadequada.

O relatório sublinha que se os países conseguissem aumentar as taxas de coleta e reciclagem do material para 60% até 2030, os benefícios – entre eles, a urgente minimização dos riscos para a saúde humana – excederiam os custos em mais de US$ 38 bilhões (aproximadamente R$ 195 bilhões).

Resíduos eletrônicos separados para a reciclagem. — Foto: GettyImages
Resíduos eletrônicos separados para a reciclagem. — Foto: GettyImages

Riqueza invisível

O relatório também pontua que o mundo “continua incrivelmente dependente” de metais de terras raras, que possuem propriedades cruciais para tecnologias futuras, incluindo a geração de energia renovável e a mobilidade elétrica. A reciclagem do lixo eletrônico poderia ajudar a aplacar essa demanda. “Não mais do que 1% da procura por elementos essenciais de terras raras é satisfeita pela reciclagem de lixo eletrônico”, afirmou Kees Baldé, da UNITAR, autor principal do levantamento.

Em 2022, o peso estimado de metais incorporados no lixo eletrônico foi de 31 milhões de toneladas. O de plástico, foi de 17 milhões de toneladas e, de outros materiais (minerais, vidro, materiais compósitos etc.), de 14 milhões de toneladas.

O valor de metais incorporados, no período, foi de US$ 91 bilhões (R$ 467 bilhões), incluindo US$ 19 bilhões (R$ 97,5 bilhões) em cobre, US$ 16 bilhões (R$ 82 bilhões) em ferro e US$ 15 bilhões (R$ 77 bilhões) em ouro. Já o valor de matérias-primas secundárias, principalmente ferro, recuperadas pela “mineração urbana” de lixo eletrônico foi de US$ 28 bilhões (R$ 143,6 bilhões).

Os europeus lideram na geração de sucata pós-moderna. A geração per capita de lixo eletrônico foi de 17,6 kg na Europa. Na Oceania, foi de 16,1 kg e, nas Américas, 14,1 kg. Os índices documentados de coleta e reciclagem per capita nessas regiões foram, respectivamente, de 7,5 kg, 6,7 kg e 4,2 kg.

Mineração: reciclagem de resíduos eletrônicos pode ajudar a aplacar demanda de metais importantes para a indústria.  — Foto: Dominik Vanyi / Unsplash
Mineração: reciclagem de resíduos eletrônicos pode ajudar a aplacar demanda de metais importantes para a indústria. — Foto: Dominik Vanyi / Unsplash

É preciso ter regulamentação para guiar a boa gestão desses resíduos. Segundo os dados do Global E-waste Monitor (GEM), 81 países tinham legislação sobre lixo eletrônico em 2023 – em 2019, eram 78. Desse total, 67 tinham um instrumento jurídico que rege a gestão do lixo eletrônico com disposições que promovem a responsabilidade estendida do produtor (EPR).

Lidar adequadamente com o crescente problema do lixo eletrônico também faz bem para a economia, podendo movimentar US$ 38 bilhões (R$ 195 bilhões) até 2030 num cenário ambicioso, onde a taxa de coleta e reciclagem global aumentaria a 60%. As principais razões são menores custos externalizados para a população e o meio ambiente, contribuições monetizadas positivas de emissões evitadas (diminuindo o volume de resíduos e evitando a utilização de matérias-primas para a produção de itens novos, o que economiza energia) e maior valor de recursos recuperados.

O levantamento indica que qualquer aumento substancial na coleta e reciclagem de lixo eletrônico exigirá uma cooperação significativa entre os setores formal e informal, e melhorias/formalização do trabalho de coleta. Isto inclui dar prioridade à separação na origem do lixo eletrônico em países que carecem de legislação específica e o estabelecimento de esquemas de coleta mais eficazes.

Também aponta que os governos nacionais com sistemas de reciclagem existentes devem dar prioridade ao aumento das taxas de coleta. Por fim, o relatório recomenda que a reparação e a renovação devem ser apoiadas e devem ser desenvolvidos projetos para prolongar a vida útil dos aparelhos.

Bons exemplos

Mulher leva laptop a cento de reparo e reciclagem. — Foto: Getty Images
Mulher leva laptop a cento de reparo e reciclagem. — Foto: Getty Images

Sim, os desafios são volumosos, mas há bons exemplos que ajudam a clarear o caminho rumo à cartilha da boa gestão de resíduos. Recentemente, o Fórum Econômico Mundial listou iniciativas adotadas ao redor do mundo que têm ajudado a aumentar as taxas de reciclagem de lixo eletrônico e a recuperar os metais e minerais contidos nos equipamentos. Confira:

1.Contêineres coloridos

Utilizar contêineres (contentores) coloridos é uma estratégia para chamar a atenção das pessoas para a reciclagem. Na Inglaterra, por exemplo, foram adotadas pela Câmara Municipal de Cambridge caçambas cor de rosa brilhante para que a população deposite pequenos produtos eletrônicos. Desde que a iniciativa foi lançada, em 2022, 49 toneladas já foram depositadas.

2- Aplicativo de lixo eletrônico

A adoção de aplicativos também favorece o aumento da coleta de lixo eletrônico. No Egito, as autoridades públicas lançaram o E-Tadweer. Através dele, o consumidor final fica sabendo onde levar seus aparelhos indesejados e ainda pode troca-los por vouchers para serem usados na compra de novos eletrônicos em lojas que aderiram ao esquema.

3- Legislação progressiva

Cingapura gera cerca de 60 mil toneladas de lixo eletrônico todos os anos. Para lidar com o problema, as autoridades do estado insular implementaram uma legislação progressiva que torna responsabilidade do produtor coletar aparelhos em fim de vida e enviá-los para reutilização ou reciclagem.

4- Recuperação de equipamentos

Ainda em Cingapura, a iniciativa Repair Kopitiam conta com uma rede de voluntários locais que trabalham em centros comunitários para ajudar a população a consertar aparelhos eletrônicos velhos ou quebrados para que possam ser reutilizados em vez de descartados. Ações semelhantes ocorrem na Europa. Na França, inclusive, desde janeiro de 2021 alguns produtos, como smartphone, notebook e televisão devem contar o índice de reparabilidade, que visa informar ao consumidor sobre o seu caráter reparável.

5- Regulamentação de resíduos eletrônicos

Alguns países do Norte de África estão recorrendo à legislação para resolver os seus desafiosna gestão de lixo eletrônico. O Egito criou uma agência reguladora para a sua indústria e aplicou uma proibição à importação de substâncias e resíduos perigosos, incluindo os resultantes de aparelhos elétricos e eletrônicos. A Tunísia elaborouo um decreto para estabelecer um sistema poluidor-pagador para a importação desses equipamentos.

6- Responsabilidade do começo ao fim

O governo de Taiwan estabeleceu um quadro jurídico para regular e gerir a eliminação e a reciclagem do lixo eletrônico. De acordo com a legislação, os fabricantes e os importadores são obrigados a conceber produtos tendo em mente a reciclagem, bem como estabelecer sistemas de coleta e financiar a reciclagem e a eliminação do lixo eletrônico, tornando-se responsáveis por todo o ciclo de vida dos itens que fabricam e vendem.