Sistema usa energia solar para transformar urina em fertilizante

Com painéis fotovoltaicos, sistema que gera fertilizante nitrogenado é alternativa de baixo custo para processo industrial
O alto custo para a produção de fertilizantes nitrogenados torna a sua distribuição desigual ao redor do mundo. As instalações de produção estão localizadas em países de alta renda, o que eleva o preço e dificulta o acesso para países de baixa e de média renda. Porém, a resposta para o problema pode estar mais próxima do que se imaginava: na urina. Segundo estudos, ela contém nitrogênio suficiente para atender a cerca de 14% da demanda por soluções agrícolas. Um sistema chamado Solar-ECS, movido por painéis fotovoltaicos, recupera sulfato de amônia em urina hidrolisada para a criação desses produtos. A inovação foi projetada por pesquisadores da Universidade Stanford e da USP.
Trata-se da prototipagem e modelagem de um sistema eletroquímico fotovoltaico-térmico, que representa um caminho mais econômico e sustentável para a produção atual de fertilizantes. Além disso, de acordo com um estudo realizado na Universidade Stanford, o tratamento eletroquímico de urina pode contribuir positivamente para o acesso ao saneamento básico e a purificação de efluentes. Entre as demais inovações propostas pelo Solar-ECS está o uso produtivo do calor dos painéis solares, algo que poderá ser aplicável em outros processos. Os resultados foram descritos em um artigo recém-publicado na revista Nature Water.
Amilton Botelho Junior é engenheiro químico e um dos autores da publicação. Ele participou da pesquisa enquanto fazia estágio na Universidade Stanford, durante seu pós-doutorado na Escola Politécnica (Poli) da USP, e relatou ter ficado impressionado com o trabalho do Laboratório do professor William Tarpeh, que produz amônia a partir de urina.
Botelho Junior lembra que “onde tem gente, tem urina”, então, o mundo todo tem um forte potencial de nitrogênio que não é aproveitado. Além disso, por ser uma técnica biológica, o sistema não causa danos para o meio ambiente. “O impacto ambiental é positivo, porque o processo é desenvolvido e produz amônia a partir de um efluente biológico”, explica em entrevista ao Jornal da USP.

Distribuição
Atualmente, países ricos do chamado Norte Global são os principais produtores de fertilizantes nitrogenados. Os produtos são desenvolvidos a partir do processo Haber-Bosh, um caro método industrial em que o hidrogênio e o nitrogênio reagem quimicamente para a maximização da síntese do amoníaco.
Segundo o pesquisador, grande parte dos alimentos consumidos hoje só podem ser produzidos graças ao processo atual. Porém, além de ter acesso mal distribuído no mundo, ele demanda a queima de altas quantidades de combustíveis fósseis para a geração de energia, o que contribui para a emissão de gases de efeito estufa e para o esgotamento de recursos naturais finitos.
O engenheiro explica que quaisquer processos eletroquímicos envolvem o consumo de eletricidade, o que impacta a pegada de carbono e o custo do projeto. Porém, por ser alimentado por energia solar, o sistema desenvolvido possui um processo mais barato e menos poluente.
“Conseguimos gerar energia elétrica, não só de maneira limpa, mas utilizando luz solar, o que reduz o consumo de energia elétrica da rede” – Amilton Barbosa Botelho Junior
Como a urina vira fertilizante?
O Solar-ECS converte nitrato (NO3-), presente na urina, em amônia (NH4+), a partir da oxirredução química – reação que envolve a transferência de partículas de carga negativa – de um elemento para o outro.
O reator desenvolvido contém três compartimentos: ânodo (polo negativo), cátodo (polo positivo) e uma câmara com ácido sulfúrico. O processo é iniciado com a urina no ânodo, e é nesta etapa que ocorre a conversão da amônia. Este processo é possível porque os dois primeiros compartimentos contém superfícies condutoras.
O segundo compartimento possui a membrana catiônica, uma película seletiva que só permite a passagem de cátions. Quando a amônia passa do ânodo para o cátodo, os cátions entram em contato com a solução de cloreto de sódio, onde a amônia vai se tornar gasosa.
Já neste estado, o elemento passa para o terceiro compartimento, em que uma membrana separa os gases para uma solução de ácido sulfúrico. Após esta etapa, os elementos se misturam formando a solução sulfato de amônia, que será utilizada para a fertilização.

É comum que painéis fotovoltaicos esquentem durante o uso; o estudo traz uma inovação e explora este fator para gerar troca de calor e aquecer os reatores. Este ponto, que seria tradicionalmente um problema, foi usado para modelar o sistema e melhorar a extração de amônia, uma vez que quanto maior a temperatura, maior a eficiência do reator.
O pesquisador relata que, para a condução dos testes, o grupo colocava os painéis na região externa do campus da universidade em diferentes dias, variando as condições climáticas a que eles eram expostos. “Houve dias que estavam com luz solar, sem nuvens no céu, e em outros dias estava nublado, então conseguimos medir o que estava acontecendo”, completa.
Segundo Botelho Junior, também foram realizados testes dentro do laboratório, em que os pesquisadores puderam, a partir de um simulador, mudar as condições climáticas. Com este equipamento era possível variar, entre outros fatores, dias limpos de verão e nublados de inverno.
Mais que agricultura
Além de contribuir com os sistemas agrícolas, a pesquisa indica que o sistema pode impactar positivamente o tratamento de águas residuais e a redução da poluição da água. Atualmente, até 70% de nitrogênio pode ser perdido para o meio ambiente em regiões superfertilizadas, o que pode causar o excesso de nutrientes em rios e reservatórios de água, resultando na perda da biodiversidade local.
“Após os testes, as amostras de urina vinham com uma coloração muito mais clara, sem a coloração amarela e odor característicos. Isso mostra um papel muito importante na remoção de um dos principais componentes da urina [o nitrogênio]”, explica o pesquisador.
O acesso ao saneamento básico também pode ser beneficiado pelo projeto. Segundo o engenheiro, o sistema é capaz de ser executado com reatores modulares e flexíveis em termos de tamanho, o que permite uma planta que sustente grandes cidades, mas que também seja adaptável para regiões isoladas.
Assim, o sistema traz a possibilidade de, futuramente, comunidades sem o alcance ideal à rede de esgoto tratarem resíduos tradicionalmente descartados e passarem a gerar soluções agrícolas de alto valor agregado.
De acordo com o pesquisador, a maior dificuldade para que o sistema seja integrado em larga escala é a viabilidade econômica. Ele explica que os materiais reagentes, sobretudo a eletricidade, apresentam um custo elevado, o que dificulta a expansão do projeto. Ainda assim, Botelho Junior destaca que o uso da energia solar representa um avanço.
O engenheiro avalia que a equipe tem conhecimento suficiente para escalonar a técnica. “É claro que aumentando a escala do processo você vai trazer novos desafios, mas acho que isso também faz parte, e não diria que são problemas que vão demorar muito tempo para serem solucionados.”
Botelho Junior conta que há pretensão de expandir a aplicação dessa tecnologia para obtenção de materiais críticos a partir da mineração, como lítio, níquel, cobalto e elementos terras raras (um conjunto de 17 minerais estratégicos para o funcionamento de diversos equipamentos que, apesar de abundantes em várias partes do mundo, são encontrados em baixa densidade).
O artigo Prototyping and modelling a photovoltaic–thermal electrochemical stripping system for distributed urine nitrogen recovery está disponível neste link.
Mais informações: amilton.junior@alumni.usp.br, com Amilton Botelho
*Estagiária sob orientação de Fabiana Mariz
**Estagiária sob orientação de Moisés Dorado