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Quintais produtivos garantem alimento no Cerrado

Quintais produtivos garantem alimento no Cerrado

Nos quintais da comunidade quilombola de São Bento do Juvenal, no Maranhão, prosperam agroflorestas, com roças e criações de aves e gado em meio a espécies nativas que também geram possibilidades de alimento e renda, como o coco babaçu. Esse cenário, na zona rural de Peritoró, um dos 135 municípios do Estado que integram a área de expansão agrícola denominada Matopiba, contrasta com o do agronegócio: Cerrado destruído para dar lugar a plantação de grãos destinados principalmente à exportação, quando deixam de ser alimento e passam a ser chamados commodities.

O que as famílias de São Bento do Juvenal praticam é a Agroecologia, uma forma sustentável de produzir alimentos e, ao mesmo tempo, conservar os recursos naturais ao redor.

Ivanessa Gomes,  agrônoma, agricultora familiar e uma das coordenadoras da Rede de Agroecologia do Maranhão (Rama), destaca que, no início, foram realizadas reuniões para conscientizar a comunidade sobre o que eram os agroquintais e seus benefícios: “Reunimos todos e falamos sobre a importância de termos um banco de sementes. Também levantamos a questão da proteção do solo, da menor utilização do fogo e do não uso de agrotóxicos nos cultivos. Hoje, temos várias famílias com sistemas agroecológicos em seus quintais, obtendo alimentos em produções diversificadas com frutos, hortaliças, legumes, ervas medicinais e animais”.

A agricultora familiar destaca que a prática é fundamental para garantir a autonomia e segurança alimentar das famílias que hoje contam com uma diversidade nutricional de alimentos produzidos por elas mesmas, de forma saudável e orgânica. “Essas famílias durante o ano inteiro produzem o que comem, trocam produtos com vizinhos e vendem o excedente em feiras e mercados locais, como uma possibilidade de geração de renda”.

Hoje, em seu quintal produtivo, Ivanessa conta com 27 hectares de agrofloresta, onde já  produz frutos e hortaliças de 20 espécies. Em sua propriedade também há uma mini fábrica de polpas, construída com o auxílio de organizações locais.

“Faz muita diferença manter essas agroflorestas em nossos quintais. Além da geração de renda,  da autonomia e segurança alimentar, hoje em dia chove mais, o tempo é mais fresco, mais arborizado, o espaço se torna mais agradável de se conviver. Atraímos a fauna local, como as abelhas e sabemos a importância delas para as produções. A Agroecologia é inclusive uma alternativa para mitigar os impactos das mudanças climáticas, em um cenário em que predomina o desmatamento”, completa.

A Agroecologia é uma forma de cultivo que propicia a produção de alimentos por meio de práticas que promovem a preservação ambiental, unindo saberes científicos aos conhecimentos ancestrais das comunidades agricultoras. O modelo vem sendo defendido como um contraponto ao modo tradicional de plantio adotado pelo agronegócio, especialmente entre os biomas Cerrado, Caatinga e Amazônia, numa região tida como o mais novo celeiro mundial de commodities no Brasil que é o Matopiba.

Agroecologia versus agronegócio

Na opinião de Robert Miller, engenheiro florestal, especialista em Agroecologia e assessor do Instituto Sociedade e Proteção à Natureza (ISPN),  a Agroecologia produz alimentos e agronegócio, commodities: soja e milho para alimentar suínos na China e gado na Europa.

“O agronegócio é importante para a balança comercial, mas também o seriam as produções da Agroecologia e as economias da sociobiodiversidade, se tivessem todo o fomento que o agronegócio recebe. Existe uma assimetria de poder insuperável. E ainda não é computado nesse cálculo o valor dos serviços ambientais perdidos quando grandes áreas de Cerrado são convertidas para o agronegócio, bem como a grilagem verde que estamos vendo agora e os conflitos fundiários com comunidades tradicionais”, explica.

Apoio à Agroecologia no Matopiba

Criado há quase 10 anos, o Instituto Novo Sertão atua em Betânia, no Piauí, e em Currais, no Maranhão, e nasceu com o intuito de fortalecer comunidades rurais com a aposta de que a Agroecologia é uma ferramenta transformadora da realidade precária das famílias que lá viviam. Desde então, a instituição vem desenvolvendo projetos em parceria com comunidades rurais do Nordeste pautados nos pilares da Educação, Cultura, Esporte/Lazer e Geração de Renda com sustentabilidade.

Por meio do Projeto Quitanda dos Quintais, o Instituto visa criar alternativas de geração de renda, ao passo que fortalece a produção agrícola com capacitações para melhoria da produção, conscientização da importância da preservação do meio ambiente e auxílio da comercialização de seus produtos.

A Quintanda dos Quintais também funciona como uma feira, onde os produtores rurais vendem os alimentos cultivados em suas agroflorestas. Atualmente mais de 80 famílias participam e são beneficiadas com a iniciativa.  Só em 2021 mais de 2 mil vegetais e legumes foram produzidos por essas famílias, somando um total de 20 mil reais em produção.

“Hoje, em Currais, a gente tem um polo de produção agroecológica que apoia cerca de 16 famílias a produzirem alimento orgânico tanto para consumo próprio, para melhorar a segurança alimentar, como para venda. A gente capacita essas famílias com conhecimento técnico e também faz a doação de insumos para que eles façam a produção dos seus alimentos dentro do que a gente chama de quintais produtivos”, destaca José Carlos Brito, co-fundador do Novo Sertão, conhecido na região como Zé da Água.

Como ponto forte, José aponta o trabalho em rede para vencer os desafios e dificuldades encontrados para a comercialização: “Para um agricultor vender, ele precisa produzir toda semana, mesmo que em pouca quantidade, e é por isso que a gente trabalha com um grupo de 15 famílias, no mínimo, para que elas possam produzir juntas e vender juntas,  com um volume de produção”.

Além do apoio com os quintais produtivos, o Novo Sertão também viabiliza a construção e uso de sistemas de reúso de águas cinzas pelas famílias, uma tecnologia social utilizada para o aproveitamento de água que cai nos ralos das pias, para a irrigação de plantas. A tecnologia visa reduzir o desperdício de água, nas comunidades rurais.

Agroecologia no Tocantins

Partindo da mesma premissa do Instituto Novo Sertão, uma iniciativa conhecida como Alternativas Para a Pequena Agricultura no Tocantins (APA-TO) também tem revolucionado as comunidades rurais com o apoio às práticas agroecológicas.

Criada em 1992, a APA-TO vem desde então atuando com foco no  desenvolvimento local participativo e na negociação e implementação de políticas públicas. Além disso, a instituição também planeja e executa atividades de apoio à comercialização e gestão das associações, assim como viabiliza capacitações e oportunidades para as comunidades rurais e estudantes de Escolas Famílias Agrícolas (EFAs).

“A necessidade desse trabalho se deu quando, a partir de 1950, o Estado do Tocantins passou a ter sérios conflitos agrários em função da construção da estrada Belém-Brasília e da expansão do agronegócio. Tivemos muitos assassinatos, muitas ações de grilagem”, relembra Paulo Rogério Gonçalves, diretor técnico da APA-TO.

Com uma forte atuação no Polo do Bico do Papagaio, região tocantinense conhecida por marcar o encontro dos biomas Caatinga, Amazônia e Cerrado, a APA-TO veio, ao longo do tempo, desenvolvendo um conjunto de projetos para apoiar famílias quilombolas da região. A exemplo disso, atualmente a APA-TO apoia o Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu, que reúne mais de 400 mil mulheres que trabalham com o fruto nativo.

Conheça aqui os projetos em andamento da APA-TO

Como um dos principais desafios a serem enfrentados pelos agricultores familiares da região, Paulo Rogério aponta as questões que envolvem a regularização agrária: “por exemplo, quando a gente fala em comunidades quilombolas, tem ali um território que não é demarcado. Essas comunidades ficam ali com seus sistemas de produção agroecológica, cercados e ameaçados pelas ações de grileiro, sem a possibilidade de fortalecer e ampliar seus sistemas de produção. A questão do acesso à terra é um dos grandes problemas para a prática da Agroecologia, além de que essas comunidades estão geralmente isoladas, o que dificulta o acesso ao mercado para esses produtos”, finaliza.

Denominado com as sílabas iniciais dos quatro estados que abrange – Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia –, o Matopiba inclui 337 municípios e é apontado desde os anos 1980 como um celeiro mundial de commodities. Sobre a vegetação nativa e populações tradicionais desses três Estados do Nordeste e um do Norte avançam plantações de soja, milho e algodão.

O Matopiba tem 73 milhões de hectares em três biomas: Cerrado ( 66,5 milhões de hectares, o equivalente a 91% da área), Amazônia (5,3 milhões de hectares correspondentes a 7,3%) e Caatinga (1,2 milhão de hectares que ocupam 1,7%). Sendo reconhecida como área de franca expansão agropecuária pelo Governo Federal desde 2015, o Matopiba é uma porteira aberta para a devastação da Amazônia.

Projeto ma.to.pi.ba.

Este conteúdo faz parte do Projeto ma.to.pi.ba., uma ação multimídia da Eco Nordeste, com o apoio do Instituto Clima e Sociedade (iCS). Com início em janeiro de 2024, traz matérias, reportagens, podcasts, webstories e newsletters que lançam sobre a região do Matopiba um olhar para além do agronegócio. Ao mesmo tempo em que aborda os problemas socioambientais, a iniciativa multimídia aponta experiências que têm dado certo na região, seguindo a linha editorial de jornalismo de soluções adotada pela Eco Nordeste.

O projeto é executado por uma equipe premiada composta pelas repórteres Alice Sales e  Camila Aguiar, com edição da jornalista Verônica Falcão e coordenação-geral da jornalista Maristela Crispim. Líliam Cunha assume a Assessoria de Comunicação, Flávia P. Gurgel é responsável pelo design; Isabelli Fernandes, edição de podcasts; Adriana Pimentel a edição das newsletters; e Andréia Vitório faz o gerenciamento das redes sociais.