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“Pela 1ª vez percebemos que o atual sistema de financiamento climático não funciona”, diz Laurence Tubiana, uma das arquitetas do Acordo de Paris

“Pela 1ª vez percebemos que o atual sistema de financiamento climático não funciona”, diz Laurence Tubiana, uma das arquitetas do Acordo de Paris

Para CEO da European Climate Foundation, não há dinheiro suficiente alocado para financiar o necessário combate às crises interligadas da economia, das mudanças climáticas e do uso de energia no Planeta

Devemos reformar urgentemente a arquitetura financeira global para promover um novo alinhamento com o Acordo de Paris. As atuais crises interligadas da economia, das mudanças climáticas, da energia e da instabilidade financeira estão se intensificando – e promovendo cataclismos que não disfarçam a forma coo atingem a sociedade de maneira desigual. Não há dinheiro suficiente sendo investido no sistema econômico mundial para financiar o combate a essa “policrise”: precisamos de novos instrumentos financeiros e medidas que tragam mais recursos para quem mais precisa.

Esse é o fundamento do que prega a economista e diplomata francesa Laurence Tubiana. À frente da European Climate Foundation (ECF), uma importante iniciativa filantrópica que trabalha para promover a transição para emissões líquidas zero e garantir um Planeta saudável e próspero para as gerações atuais e futuras, a CEO luta por uma transição climática positiva, centrada nas pessoas e socialmente responsável na Europa e em todo o mundo.

Nesta entrevista ao Um Só Planeta, ela lembra que, em recente relatório, o IPCC alertou que 3,3 a 3,6 bilhões de pessoas vivem atualmente em áreas “altamente vulneráveis” a impactos extremos – ou seja, quase metade da população mundial está suscetível aos efeitos do clima extremo. “A nossa arquitetura financeira não está preparada para esses desafios”, explica Laurence, citando também que a Agência Internacional de Energia (AIE) destaca que alcançar a neutralidade de carbono até 2050 exige triplicar o investimento em energia limpa em todo o mundo, para US$ 4 bilhões por ano até 2030. “Ainda estamos muito distantes disso”, ela descreve.

A intersecção entre clima e finanças é a especialidade de Laurence Tubiana. Além de chefiar a European Climate Foundation, ela é professora no Institut d’Études Politiques de Paris — mais conhecido como Sciences Po, abreviação que designa ciências políticas —, um dos mais respeitados centros de estudos sociais e políticos do mundo. Anteriormente, presidiu o Conselho de Governadores da Agência Francesa de Desenvolvimento (AFD), bem como o Conselho da Expertise France (a agência pública francesa de assistência técnica internacional). Antes de ingressar na ECF, Laurence foi Embaixadora da França para as Mudanças Climáticas e Representante Especial para a COP21 e, como tal, contribuiu para arquitetar o histórico Acordo de Paris. Após a COP21 e durante a COP22, ela foi nomeada Campeã de Alto Nível da ONU para a ação climática.

Com foco nas finanças e sua relação com o ambiente, Laurence destaca que o financiamento adequado poderia abrir caminho para um sistema de energia limpa que coloque o Planeta em uma trajetória mais segura – porém, na situação atual, os cálculos ainda não levam em conta os custos dos choques climáticos já desencadeados. Para além do montante de bilhões de dólares necessários, ela avalia que a geopolítica é um obstáculo fundamental que precisa ser superado.

Confira, nesta entrevista, o que pensa a CEO da European Climate Foundation.

Você aponta que a arquitetura financeira global é injusta e inadequada para enfrentar os desafios do nosso tempo. De que forma esse tema deve estar presente no debate climático mundial, e como recuperar o “espírito” do Acordo de Paris, de cuja elaboração você participou ativamente?

Vejo que, pela primeira vez, estamos colocando a arquitetura financeira climática, uma arquitetura financeira que deve ser global, no centro do problema. Sabe há quantos anos estamos discutindo uma reforma? Talvez 20… então pelo menos agora estamos enxergando que é realmente necessário fazer isso, mesmo que novamente estejamos atrasados em fornecer os US$ 100 bilhões que prometemos em 2010 e precisemos de US$ 2,4 trilhões para os países em desenvolvimento até 2030.

Então aonde estamos hoje é em um modelo de negócio diferente, porque temos US$ 51 bilhões de financiamento climático para países de baixa renda e países de renda média, todos juntos. Claramente, não chegamos lá ainda, então temos que fazer acontecer, em quantidade e em qualidade, um maior e mais amplo financiamento climático. Mas, ao mesmo tempo, acho que já há um consenso de grandes chefes de estado de que o sistema atual não funciona. Isto é importante: estou trabalhando com clima há 30 anos, e acho que é a primeira vez que percebo esse cenário.

Acho que, com isso, podemos realmente reconhecer que a agenda de mercado está evoluindo, englobando um quadro de adequação de capital, identificando todos os contornos das áreas prioritárias para garantir um sistema mais justo e adequado ao clima.

Recentemente o G20, atualmente presidido pelo Brasil, confirmou a entrada da União Africana como membro permanente do grupo das maiores economias do mundo. Em 2021, o Fundo Monetário Internacional (FMI) aprovou a maior injeção de recursos de sua história com a criação de ativos de reserva, conhecida como Direitos Especiais de Saque (SDRs, na sigla em inglês), para ajudar as nações a lidar com a crise intensificada pela pandemia, com foco especial na África. Você identifica que algo semelhante possa acontecer em relação ao clima?

É muito interessante ver a União Africana agora fazendo parte do G20, e fico esperançosa quanto aos possíveis impactos disso no FMI. Você sabe que o sistema está abalado, e há expectativas como essa, que poderiam ser muito boas.

Isso está acontecendo, então eu acho que os MDBs (bancos multilaterais de desenvolvimentos na sigla em inglês, instituições intergovernamentais destinadas à promoção do desenvolvimento econômico e social em escala internacional) e os líderes mundiais precisam mostrar maior liderança política e acelerar seus esforços para implementar recomendações de alternativas como essa, sim. Porque elas já estão lá, e mais ou menos todos concordam que desbloqueamos a questão dos SDR, um potencial de recursos muito importante. Mas é claro que os proprietários do capital, os credores do Banco Mundial e outros devem realmente estar por trás desta reforma.

Esses bancos poderiam ser a chave para destravar o financiamento climático necessário – com urgência e em escala global?

Os MDBs não conseguem alcançar tudo o que precisamos. A colaboração com o capital nacional, com os bancos públicos de desenvolvimento também é necessária, e essa é a realidade com que precisamos trabalhar.

Nos níveis locais, é mais fácil saber o que pode ser feito. E isso pode ser beneficiado por uma discussão fiscal, contemplando impostos para uso doméstico que passam por uma transferência de tributação internacional, como por exemplo no mercado de carbono ou no imposto sobre carbono, que tem que voltar para desenvolver um país. Portanto, o que quero dizer é que o benefício do imposto deve permanecer nos países, e as atividades globais que fazem parte desse sistema têm de financiar o que acontece pelo clima nos países em desenvolvimento.

O mundo deu alguns passos para trás em relação à defesa do clima após a aprovação do Acordo de Paris, que deveria justamente comprometer os países com o avanço no combate ao aquecimento global?

Eu acho que temos que liberar mais financiamento, estamos muito para trás nesse quesito. Mas acho que é preciso manter o ânimo com algumas conquistas, e realmente temos que manter a pressão sobre o cumprimento do Acordo de Paris.

Fala-se muito sobre o alinhamento realmente eficiente a esse acordo histórico, e fiquei feliz em ouvir isso em alguns eventos com participação de líderes importantes nos últimos tempos. Mais governos precisam perceber que é possível estar alinhado com Paris e ter um bom modelo de negócios nacional e internacional, e liderar um desenvolvimento multilateral também. Percebo que os bancos estão realmente atrasados ainda nesse sentido.

Você defende uma tributação internacional sobre atividades especialmente poluentes, que seja revertida para a ação climática por meio de financiamentos?

Penso que a tributação internacional para a ação climática é necessária porque o espaço fiscal dos países do G7 não vai fazer a diferença sem mudanças fundamentais. E uma das opções que temos discutido é a de garantir mais equidade no nosso sistema financeiro. Um possível modelo seria aquele em que todos os países pagariam por essas atividades poluentes, mas os países em desenvolvimento se beneficiariam duas vezes – com a mobilização de recursos internos e a contribuição dos países desenvolvidos.

Por isso é muito importante que haja alguma transferência inicialmente, e isso precisa ser acelerado. Depois, com a popularização do mercado de carbono e outras ferramentas, a receita de impostos também poderá voltar em maior volume para os países em desenvolvimento, para ajudá-los na transição. Estamos evoluindo, dando os primeiros passos, mas ainda falta muito para chegar lá.