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País da África pode ter primeira migração em massa permanente causada pelo clima

País da África pode ter primeira migração em massa permanente causada pelo clima

Mais de 700.000 pessoas foram afetadas durante a última temporada de enchentes. País reúne centenas de milhares de pessoas que precisaram abandonar suas casas por conta de inundações

Inundações engoliram mais uma vez grande parte do Sudão do Sul, e fizeram níveis recordes de água no Lago Vitória fluírem pelo Nilo. Mais de 700.000 pessoas foram afetadas. Centenas de milhares de pessoas já foram forçadas a abandonar as suas casas devido a enormes inundações há alguns anos, e ainda não haviam retornado até o surgimento desta nova ameaça.

Agora, existe a preocupação de que estas comunidades deslocadas possam nunca mais conseguir regressar às suas terras. Embora os extremos climáticos desloquem regularmente comunidades inteiras em outras partes do mundo, esta poderá ser a primeira deslocação humana permanente devido às mudanças climáticas.

Na região do pântano de Sudd, no Sudão do Sul, o Nilo atravessa uma ampla rede de rios menores, pântanos e planícies aluviais. É uma das maiores zonas úmidas do mundo. Os níveis de inundação variam significativamente de ano para ano, principalmente causados ​​pelas flutuações nos níveis de água no Lago Vitória e pelas descargas controladas da barragem no Uganda, onde o lago deságua no Nilo.

A geografia única do Sudd faz com que as inundações sejam muito diferentes das de outros lugares. A maior parte das águas das cheias não consegue escoar livremente de volta para o canal principal do Nilo, e a água tem dificuldade em infiltrar-se no solo argiloso e sedimentado da planície inundada. Isto significa que as inundações persistem por muito tempo, diminuindo aos poucos à medida que a água evapora.

As pessoas não aguentam mais

As comunidades que vivem no Sudd, incluindo os Dinka, Nuer, Anyuak e Shilluk, estão bem adaptadas às inundações sazonais. Os pastores transportam o seu gado para terrenos mais elevados à medida que as águas das cheias sobem, enquanto muros de terra feitos de lama compactada protegem as casas e a infra-estrutura das comunidades. Durante a época das cheias, a pesca sustenta as comunidades locais. Quando as cheias diminuem, são plantadas culturas como amendoim, quiabo, abóbora, sorgo e outros vegetais.

No entanto, os níveis recordes de água e a longa duração das recentes inundações sobrecarregaram estes mecanismos de sobrevivência. O prolongado estado de conflito no país reduziu ainda mais a sua capacidade de resposta. Os anciãos da comunidade que falaram com os nossos colegas da Médicos Sem Fronteiras disseram que o medo do conflito e da violência os inibiu de se mudarem para regiões segurar que encontraram durante um período de grandes inundações no início da década de 1960.

Cerca de 2,6 milhões de pessoas foram deslocadas de onde viviam no Sudão do Sul só entre 2020 e 2022, em decorrência de conflitos e violência (1 milhão) e de inundações (1,5 milhões). Na prática, os dois estão interligados, uma vez que as inundações fizeram com que os pastores deslocados entrassem em conflito com os agricultores residentes por causa da terra.

A estagnação das águas das cheias também leva a um aumento de infecções transmitidas pela água, como cólera e hepatite E, picadas de cobra e doenças como a malária. À medida que as pessoas ficam desnutridas, estas doenças tornam-se mais perigosas. A subnutrição já é um grande problema, especialmente para as cerca de 800 mil pessoas que fugiram do Sudão para o Sudão do Sul, após o início de um conflito separatista no país, em abril de 2023.

Muitas pessoas estão alojadas em campos de deslocados no próprio país, como Bentiu, onde residem cerca de 100 mil pessoas. Bentiu é agora uma ilha nas águas das cheias, protegida por aterros que requerem manutenção contínua. Já existem preocupações sobre o futuro a longo prazo e a sustentabilidade do acampamento.

Os novos níveis recorde no Lago Vitória em maio deste ano fizeram soar o alarme sobre potenciais inundações sem precedentes no país este ano. Os dois meses e meio necessários para que as águas das cheias cheguem rio abaixo até ao Sudão do Sul serviram como um alerta precoce para as comunidades e agências humanitárias se prepararem. No entanto, os modelos de previsão não são capazes de estimar com precisão se os aterros em campos como Bentiu vão resistir.

As pessoas vão retornar algum dia?

A evacuação do campo pode ser inevitável, dizem alguns especialistas, porque as inundações parecem piorar, provavelmente em decorrência ao desmatamento e às mudanças climáticas causadas pelo homem. No entanto, embora exista uma clara tendência de aumento nos níveis dos lagos em toda a África Oriental, incluindo o Lago Vitória, isso também pode dever-se à forma como a água e a terra estão sendo geridas, bem como às alterações no regime de chuvas.

Embora tenha havido aumentos nas chuvas durante as chuvas curtas da região em outubro, novembro e dezembro, isso é compensado por diminuições na estação chuvosa entre março e maio.

No entanto, os modelos climáticos indicam aumentos no volume de chuvas na bacia hidrográfica de Sudd, bem como fases positivas mais frequentes do Dipolo do Oceano Índico (um fenômeno climático semelhante ao El Niño no Pacífico), que causou o recorde de chuvas em 2020 e 2023. Mesmo pequenos aumentos na frequência destas fases dipolo positivas, e pequenos aumentos na precipitação, podem levar ao crescimento das zonas úmidas de Sudd – de forma permanente.

Os tomadores de cisão do país, marcado por conflitos, estão habituados a cenários incertos, mas também terão de considerar que uma expansão irreversível das zonas húmidas de Sudd poderia tornar a deslocação permanente. Para onde essas comunidades poderiam ser realocadas é outra questão.

Este artigo foi publicado originalmente no site The Conversation, e é de autoria de Liz Stephens, professora de Riscos Climáticos e Resiliência na Universidade de Reading e Jacob Levi, do Instituto de Saúde Internacional – Universidade de Medicina de Berlim.