“Ou mudamos a produção ou vamos enterrar o planeta em lixo”, diz especialista

Pedro Prata, gerente sênior de Políticas Públicas da Fundação Ellen MacArthur, a faz um alerta para crise de contaminação e poluição por conta do plástico
Em etapa final das negociações, o Tratado Global da Organização das Nações Unidas (ONU) contra a poluição plástica promete transformar hábitos de consumo, produção e descarte no mundo inteiro. Um levantamento elaborado pela consultoria Systemiq, encomendado por coalizão empresarial, aponta que esse pode ser o maior acordo ambiental desde o Acordo de Paris, de 2015.
Em entrevista ao Correio, Pedro Prata, gerente sênior de Políticas Públicas para a América Latina na Fundação Ellen MacArthur, que tem participado das negociações, deu um panorama sobre os passos finais parao acordo, que deve ser finalizado em Genebra, Suíça, em agosto. “O tratado tem um potencial enorme de transformar diretamente a vida das pessoas, muito mais até do que os tratados de clima e biodiversidade, que, às vezes, parecem distantes do cotidiano”, afirmou.
O Tratado Global da ONU contra a Poluição Plástica tem sido descrito como o maior acordo ambiental desde o Acordo de Paris. O que torna esse tratado tão urgente e crucial?
O tratado é crucial porque responde a uma das três grandes crises ambientais que vivemos hoje. A crise da contaminação e poluição, ao lado da crise climática e da perda de biodiversidade. As duas últimas já contam com acordos internacionais importantes, o Acordo de Paris para o clima e o tratado da biodiversidade fechado em Montreal. Mas faltava um pacto global à altura da crise da poluição, especialmente a causada pelos plásticos. O plástico é um material onipresente: está em tudo o que consumimos, vestimos, comemos. A maneira como o utilizamos atualmente, de forma linear e descartável, transformou essa durabilidade, que é sua principal qualidade, em um problema ambiental imenso. Por isso, o tratado tem um potencial enorme de transformar diretamente a vida das pessoas, muito mais até do que os tratados de clima ou biodiversidade, que às vezes parecem distantes do cotidiano. Com esse tratado, podemos mudar a forma como interagimos com praticamente todos os produtos do nosso dia a dia.
Quais são os pontos principais que esse tratado deve abordar? O que realmente pode mudar no cotidiano da população?
O tratado precisa apresentar diretrizes globais claras para mudar a forma como os produtos plásticos são concebidos e produzidos. Hoje, a lógica da indústria é linear: produz-se plástico barato, com altíssima durabilidade, para ser usado uma única vez e descartado. É uma contradição absurda. Pegamos a principal qualidade do material, sua durabilidade, e aplicamos no pior contexto possível: o uso único. O tratado deve promover uma transição para uma economia circular do plástico, incentivando que produtos sejam pensados para reuso, reparo, remanufatura e reciclagem desde a origem. Além disso, há pontos polêmicos em discussão, como a definição de quais tipos de plástico devem ser eliminados com prazos definidos, por exemplo, microplásticos usados intencionalmente em cosméticos, e o limite de produção de resina plástica, que é a matéria-prima do plástico. Outro tema sensível é o financiamento: quem vai pagar por essa transição. Países mais ricos, que historicamente contribuíram mais para a poluição, precisam ter maior responsabilidade financeira. O Brasil tem defendido isso de forma correta nas negociações.
Em que estágio estão as negociações? Existe mesmo a possibilidade de um acordo ser finalizado em agosto?
A previsão inicial era concluir as negociações em cinco grandes rodadas, chamadas de INCs. Mas, ao fim do quinto encontro, realizado em dezembro na Coreia do Sul, não houve acordo — o que foi considerado um fracasso. Como alternativa, decidiu-se realizar uma espécie de “segunda parte” desse quinto encontro, agora em agosto, em Genebra. A boa notícia é que o clima mudou. Se antes havia incerteza sobre a continuidade do processo, agora há um consenso de que o tratado sairá dessa próxima reunião. A disputa passou a ser: qual tratado será aprovado? Há o risco de termos um texto pouco ambicioso, focado apenas na gestão de resíduos — ou seja, continuamos produzindo e consumindo plástico como hoje, e tentamos apenas ‘remediar’ os impactos. Mas o que defendemos é um tratado que enfrente o problema na origem: mudando a forma como o plástico é produzido e posto no mercado.
E se o tratado for ambicioso? O que muda no curto prazo para governos, empresas e cidadãos?
Muda bastante. Para os governos, haverá pressão imediata por regulamentações, leis e políticas públicas mais rígidas e modernas sobre o uso e produção de plásticos. O Brasil, por exemplo, hoje não tem uma política nacional robusta sobre plástico. Está atrasado até em relação a outros países da América Latina, como o Chile. Para as empresas, o impacto será direto. Elas terão que adaptar rapidamente suas linhas de produção e produtos. E isso pode até ser positivo: com o tratado, o financiamento e o crédito para essa transição tendem a se tornar mais acessíveis, o que hoje é uma grande barreira. O setor produtivo passará a ter mais previsibilidade e condições para investir em soluções circulares. Para o consumidor, essas mudanças começarão a aparecer em poucos anos. Embalagens retornáveis, sistemas de reuso e produtos com maior durabilidade vão se tornar mais comuns e acessíveis.
Um estudo indica que o tratado pode gerar uma economia global de até US$ 200 bilhões até 2040. De onde vem esse ganho?
O modelo atual é extremamente ineficiente e caro. A gente gasta uma fortuna para extrair matéria-prima virgem, transformá-la em plástico e, depois, simplesmente descarta. Isso é desperdício de dinheiro, energia, matéria-prima e esforço. Se você muda esse modelo, por exemplo, reutilizando uma mesma garrafa PET 30 vezes, em vez de produzir 30 garrafas novas, você economiza em várias frentes. Menos extração de petróleo, menos energia no processo produtivo, menos lixo, menos necessidade de reciclagem. Essa lógica se aplica também em outras cadeias, como a automobilística, onde reutilizar ou remanufaturar peças plásticas sai muito mais barato do que produzir tudo do zero.
E como garantir que o investimento necessário como os US$ 50 bilhões estimados para América Latina e Caribe seja bem aplicado?
A chave está em dois fatores: diretrizes claras e participação social. O dinheiro precisa ter destino certo, com planejamento e controle. E, claro, precisa haver transparência, fiscalização, atuação de órgãos como tribunais de contas e envolvimento da sociedade civil. Hoje, muitos municípios já gastam boa parte do orçamento com gestão de resíduos — em alguns casos, até 30% — com resultados ineficientes, porque estamos tentando dar conta de um sistema feito para gerar lixo. O tratado pode ajudar a reverter essa lógica, focando na redução da geração de resíduos antes mesmo de pensarmos na gestão.
Você mencionou que o Brasil está atrasado. Mas em algum ponto temos atuado com protagonismo?
Sim, principalmente na discussão sobre financiamento. O Brasil tem liderado um dos grupos de trabalho que discute esse tema no tratado e tem defendido, com razão, que países em diferentes estágios de desenvolvimento tenham responsabilidades diferenciadas. O problema é que o Brasil ainda insiste em buscar financiamento para medidas paliativas, como fechar lixões, em vez de propor soluções estruturantes. O foco precisa ser mudar a forma como os produtos são desenhados e como o plástico é produzido, esse é o cerne do problema. Ou mudamos a produção ou vamos enterrar o planeta em lixo.
E como o tratado pode beneficiar diretamente os catadores, que são atores fundamentais na gestão de resíduos no Brasil?
Hoje, muitos produtos que chegam até os catadores simplesmente não têm valor de mercado. Eles gastam tempo separando materiais que não geram nenhuma renda. Com produtos feitos para circular, ou seja, para serem reutilizados ou reciclados de verdade, o cenário muda. Catadores passariam a ter acesso a materiais com maior valor, menos perda de tempo, e, consequentemente, mais renda. Mudar o desenho dos produtos plásticos afeta diretamente a ponta da cadeia, valorizando o trabalho dessas pessoas.
Você acredita que o desempenho do Brasil nessas negociações pode impactar sua imagem na COP30?
Com certeza. O Brasil vai sediar a próxima COP do Clima e está se posicionando como liderança ambiental global. Mas essa ambição precisa ser coerente em todas as frentes. Se o país tiver um papel fraco ou pouco ambicioso nas negociações sobre plásticos, isso pode gerar desgaste político. Além disso, o plástico é um derivado fóssil. Sua produção e descarte têm impacto direto na emissão de carbono. Se não enfrentarmos esse problema com seriedade, não conseguiremos cumprir nossas metas climáticas. Então há, sim, uma relação direta entre esse tratado e a COP30.
Pela primeira vez, grandes empresas estão apoiando um tratado ambicioso. Isso surpreende?
Muito. Historicamente, o setor privado era visto como um freio para avanços em tratados ambientais. Dessa vez, grandes empresas como Coca-Cola, Pepsi, Nestlé e Unilever estão pedindo por regras claras, globais e ambiciosas. Elas alegam que, sozinhas, suas iniciativas voluntárias não são suficientes, precisam de regulação para mudar de verdade. E isso faz sentido. Regras harmonizadas permitem que essas empresas planejem suas cadeias produtivas com mais segurança, reduzam a dependência de matéria-prima virgem e lidem melhor com a oscilação de custos. É claro que elas têm interesses nisso, mas o fato de estarem do lado da ambição ambiental é algo inédito e muito positivo.