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‘Os cigarros eletrônicos nunca foram redução de risco’, afirma diretor do Instituto Nacional do Câncer

‘Os cigarros eletrônicos nunca foram redução de risco’, afirma diretor do Instituto Nacional do Câncer

À frente do Inca, Roberto de Almeida Gil fala de como os vapes ameaçam avanços antitabagistas do país

As leis antifumo estabelecidas no país desde os anos 1990 reduziram em cerca de 75% o número de fumantes brasileiros, segundo pesquisa publicada em 2019 pela revista Lancet. Graças ao aumento dos preços dos cigarros, às restrições de propaganda e às campanhas antitabagistas, entre outras medidas adotadas de lá para cá, mais de 7 milhões de vidas serão salvas até 2050, conforme outra estimativa, divulgada pela publicação científica em 2017.

Mas os avanços das últimas décadas podem ser comprometidos pela forte pressão da indústria tabagista no sentido de afrouxar a regulamentação sobre os cigarros eletrônicos, diz o oncologista Roberto de Almeida Gil, diretor-geral do Instituto Nacional de Câncer (Inca). A vedação à fabricação e à venda de vapes vem desde 2009, e foi ratificada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) no mês passado. No entanto, essa guerra segue longe de estar ganha, salienta o médico, em entrevista ao EXTRA.

Gil chama a atenção também para a necessidade de se agir para reverter os alarmantes índices de sedentarismo, obesidade e consumo de alimentos ultraprocessados pelo povo brasileiro, fatores que elevam o risco para a ocorrência de pelo menos 15 tipos de câncer.

Quais são os grandes desafios da atenção oncológica no país hoje?

A primeira coisa que precisamos registrar é que o Brasil vem vivendo uma transição epidemiológica. O país envelheceu em 40 anos o que na Europa demorou 400 anos para acontecer, e isso, obviamente, tem impacto na incidência das doenças crônicas não transmissíveis; entre elas, o câncer. Temos hoje um aumento da longevidade e, consequentemente, do número de diagnósticos. Além disso, também tivemos o fenômeno da urbanização, que faz com que se tenha maior incidência de alguns tipos particulares de câncer. A poluição ambiental, por exemplo, vai aumentar a incidência de tumor no pulmão. Outra questão é a obesidade, fenômeno relacionado ao desenvolvimento de determinados tipos de câncer, e que ocorre em grandes partes do país, mesmo onde não se tinha essa tendência. E, finalmente, o sedentarismo, a violência urbana, as pessoas andando menos nas ruas. Tudo isso traz questões importantes para a gente entender o porquê do aumento da incidência de câncer no mundo, mas mais acentuadamente nos países em desenvolvimento e nos países já desenvolvidos.

E no que diz respeito à prevenção?

O principal ponto é o tabagismo, e a dificuldade de se enfrentar essa indústria, que busca, com todos os meios, burlar normas políticas. É um produto que mata um em cada dois dos seus usuários, então ele não deveria sequer existir. Uma vez existindo, e de forma legal, é importante que se tenha leis e proteção a todos. O Brasil é exemplar nesse sentido. Construímos uma política para controle do tabaco que possibilitou diminuir a prevalência de fumantes de 34% para 12%, com impacto enorme na redução de incidência e mortalidade por câncer de pulmão. Mas a indústria não para, e agora mesmo vemos a tentativa desesperada de reverter a regulamentação sobre os dispositivos eletrônicos para fumar (DEFs), a proibição da comercialização e da propaganda. Felizmente, a Anvisa manteve a posição firme de proibir, e é uma grande vitória para o país. No Brasil, os percentuais de jovens que fazem uso diário de cigarros eletrônicos se mostram muito inferiores aos verificados em países onde os DEFs são liberados: 0,6%, segundo dados do Vigitel (sistema do Ministério da Saúde) e do Covitel (levantamento conduzido pela Universidade Federal de Pelotas, no Rio Grande do Sul). Na Inglaterra, chega a 7,9%.

O senhor acredita que os avanços que tivemos com a redução do tabagismo nos últimos 30 anos podem se perder, caso os vapes se popularizem e sigam sem fiscalização?

É enorme o papel que o Brasil tem no mundo em relação às leis de controle do tabaco: a proibição de fumar em ambientes fechados ou parcialmente fechados, a inserção de advertências nas embalagens de produtos de tabaco, o enfrentamento à indústria, que foi permanente. Só que é uma luta sem fim, porque a indústria todo o tempo está buscando a manutenção e perpetuação do seu negócio, que é a escravidão pela nicotina. Nesse sentido, não se pode pensar de maneira nenhuma que os cigarros eletrônicos são uma questão de redução de risco. Nunca foram. São estratégias da indústria para aumentar a iniciação, sobretudo entre os jovens, e perpetuar o seu negócio.

O preço mais baixo do cigarro convencional pode fazer com que o jovem migre do vape e o vício se perpetue?

O cigarro convencional está muito barato; o seu preço real vem caindo seguidamente desde 2017. E já existem muitos estudos que mostram que o uso de DEFs entre adolescentes que nunca fumaram quadruplica o risco de eles virarem usuários regulares de cigarros convencionais. A experimentação dos DEFs no Brasil serve, dentre outros aspectos, para introduzir na dependência da nicotina um perfil socioeconômico de adolescentes que nunca teria se aproximado dos produtos derivados do tabaco. Depois, eles poderão migrar para o cigarro convencional, extremamente acessível no país. Ou seja, uma flexibilização do uso dos DEFs no Brasil serviria para piorar um problema já existente. Vale a pena ainda ressaltar o potencial impacto negativo que uma flexibilização dos DEFs teria para o aumento da aceitação social e uso de produtos que emitem fumaça em espaços coletivos fechados. A proibição foi alcançada com muito esforço, contra a interferência da indústria do tabaco na saúde pública brasileira

Como comunicar melhor à sociedade em geral, e especialmente aos jovens, os riscos que os vapes trazem?

A indústria do fumo, ao longo de décadas, sempre vendeu a ilusão da redução dos danos. Primeiro foi através de filtros e piteiras; depois, dos cigarros light, modificações de conteúdo para que parecesse ter menor risco à saúde. Só que a gente sabe que tudo foi uma estratégia. Os dados mostram que ao longo dos anos se reduziu o percentual de uso de cigarros eletrônicos pelos jovens, ao contrário do que se pensa. Estamos vendo que países que liberaram hoje estão voltando atrás, revendo as suas políticas, porque os DEFs se tornaram um incentivo à iniciação. E, repito, essa iniciação, no Brasil, tem um lado perverso: também pode estimular a volta do uso do cigarro convencional, porque o dependente de nicotina vai procurar o produto que estiver mais ao seu alcance. Então podemos, sim, ver em risco todos esses bons indicadores que a gente conseguiu na diminuição de prevalência.

Fiscalizar os vapes parece algo inviável num país onde entram drogas todos os dias… Qual sua visão sobre isso?

O Brasil é um país continental, e a fiscalização não é fácil. No caso dos cigarros convencionais, cuja comercialização é permitida, o contrabando chega a cerca de 40%. Isso mostra que não é a liberação da comercialização destes produtos que vai diminuir o contrabando. O que se precisa ter é uma fiscalização efetiva, e seguir com os esforços que já vêm sendo feitos pela Polícia Federal e por todos os setores responsáveis. Precisamos da parceria neste sentido com outros países vizinhos, ações no âmbito do Mercosul, e a efetiva implementação da Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco (tratado da OMS datado de 2001) e de seus protocolos, como o de enfrentamento do comércio ilícito.

Preocupam os atuais patamares de obesidade e o sedentarismo no Brasil, entre outros hábitos que podem contribuir para o surgimento de doenças como o câncer, como o senhor falou. Falta informação clara sobre esses riscos?

Eu acho essa uma questão essencial. O Brasil hoje tem 25% da sua população obesa, e 60% com sobrepeso. Nós tivemos modificações significativas nos nossos hábitos alimentares. O aumento do consumo de ultraprocessados, aliado a distorções nas políticas de preços favorecem o consumo de alimentos não saudáveis. Com isso, esses produtos se tornam mais baratos, de mais fácil consumo, em situação conflitante com alimentos in natura e minimamente processados, que se tornaram mais dispendiosos. Nós precisamos ter políticas públicas para a merenda escolar, para hábitos alimentares que devem ser cultivados desde a infância. A alimentação que você adota na infância vai influenciar no seu comportamento futuro. Nós estamos vendo hoje o aumento na incidência de câncer em pacientes mais jovens, provavelmente expostos mais precocemente a fatores de risco.

Há estudos que apontam que o consumo de ultraprocessados está associado a um maior risco para o câncer do trato digestivo, entre outros…

Sim, o consumo desses alimentos promove o ganho de peso e o excesso de gordura corporal, e com isso, aumenta o risco de pelo menos 15 tipos de câncer. Hoje, nós estamos procurando estratégias no sentido de enfrentar a situação. Não é fácil, como eu falei. São determinantes comerciais importantes. Já avançamos um pouco na política de rotulagem, mas ainda precisamos avançar muito em políticas de preços e regulação de marketing. Os danos econômicos para a saúde com alimentação são tão grandes quanto os do cigarro, e a gente nunca vai recuperar isso através de impostos.

O tumor na próstata, à exceção do câncer de pele, segue como o mais comum entre homens brasileiros. Recentemente, vimos como uma propaganda protagonizada pelo ator Antônio Fagundes estimulando o exame do toque gerou espanto e polêmica. Em pleno 2024, o machismo do brasileiro atrapalha na prevenção deste tumor?

Acho que todas essas questões comportamentais dificultam o acesso a um exame médico. A gente tem que entender que o toque retal é um exame médico, tem as suas indicações. Hoje não se recomenda o rastreamento populacional no paciente assintomático. Mas é parte inerente ao exame de uma pessoa com sintomas urinários que se faça o toque retal. E obviamente, se há alguma restrição de ordem comportamental do homem a aceitar isso, ele pode realmente estar comprometendo a sua saúde. O exame permite saber o tamanho da sua próstata, se você pode ter alguma dificuldade urinária, se tem uma hipertrofia prostática benigna, por exemplo, ou se há um nódulo na próstata que seja preciso investigar. E obviamente que deve ser combatido todo preconceito que um homem possa ter, por sentir atingida a sua masculinidade. Acho muito importante, por exemplo, quando o próprio presidente da República fala que fez um toque retal como parte de um exame urológico. É importante que isso seja falado por pessoas conhecidas, para que se tire preconceitos da sociedade.

O obscurantismo e o moralismo vêm sendo entraves para a vacinação infantil contra o HPV. Com a pandemia da Covid-19, vimos que a disseminação das informações falsas sobre vacinas da época resvalam em outros imunizantes. Precisamos de campanha informativa contra as fake news?

Sim, não só no Brasil, como no mundo inteiro. Esse movimento antivacina é inexplicável. Precisamos ter uma cobertura vacinal maior que 90% para realmente proteger as mulheres. Hoje, nós temos uma cobertura de 76% e, em alguns estados, ela é realmente baixa. Em primeiro lugar, é importante que se tenha campanhas permanentes de vacinação, de todas as vacinas. O Brasil tem um calendário vacinal maravilhoso, uma política pública hoje exitosa e reconhecida no mundo inteiro. A Covid foi um triste exemplo daquilo que o poder público não deve fazer em relação à vacina, criando um descrédito pelo qual hoje se paga um preço altíssimo. Acho que devemos continuar tendo progresso. Que facilitem o acesso à vacina nas escolas.

Existem até campanhas religiosas contra a vacinação do HPV.

A gente não pode enfrentar nenhum tipo de preconceito moral. É um absurdo imaginar que vacinar contra o HPV seja entendido como um incentivo à sexualização precoce. A doença ceifa a vida de tantas mulheres e jovens por câncer de colo uterino, que poderia ser evitado. Estamos ampliando esse leque de cobertura. Queremos que meninos e meninas estejam vacinados em um período de tempo maior, e com isso, poder erradicar uma série de cânceres que estão relacionados ao HPV, inclusive o de orofaringe, que está aumentando no Brasil. Então, o movimento antivacina é muito prejudicial. Um exemplo positivo é a vacinação contra a hepatite B, que está conseguindo reduzir muito os indicadores de câncer de fígado no país.