O que a COP30 serviu? E o que isso diz sobre a nossa comida e agricultura
Depois de uma longa temporada e Belém, Viviane Noda conta o que a alimentação na COP30 revela sobre nosso compromisso climático
Cheguei em um almoço de domingo na Casa IPÊ, um quintal cheio de plantas, cuias de tacacá sendo servidas e um calor úmido que abraça a gente antes mesmo do “bom dia”. Era uma mesa despretensiosa, dessas em que você chega e sente como se conhecesse todo mundo. Um começo improvável para uma das reflexões mais importantes que tive durante a COP30.
Sentei no chão (literalmente) para não atrapalhar quem estava atrás de mim. E, ali, com os pés cruzados como se tivesse torcendo com o corpo todo, me peguei pensando: “Que privilégio estar ouvindo essas pessoas que moldam o futuro do clima e da biodiversidade como se fossem conhecidos.”
Foi nesse ambiente acolhedor, que cheguei a convite da Alice, uma das conselheiras do IPE (Instituto de Pesquisas Ecológicas), que Carlos Nobre soltou uma frase que virou meu fio condutor na COP30: “O açaí só ganhou a proporção que tem hoje porque entrou na novela da Globo e, depois, surfistas levaram para a Califórnia. A cultura transformou o açaí num fenômeno mundial, e a economia foi atrás.”

A fala, aparentemente simples, dizia muito mais do que parecia.
Não foi política pública.
Não foi um plano estratégico de desenvolvimento.
Foi cultura que empurrou o açaí para o mundo.
E ali entendi algo fundamental: se queremos transformar o sistema alimentar, precisamos transformar o imaginário. O futuro do clima passa pelo futuro do seu prato. (Obs.: isso não diminui a importância das políticas públicas, que são fundamentais, mas reforça que cultura e política caminham juntas.)

A COP30 colocou o alimento no centro, pela primeira vez na história
Enquanto líderes globais debatiam metas e emissões, outra movimentação movia a conferência: a que garantiu comida fresca, justa e diversa para milhares de pessoas todos os dias.
Pela primeira vez na história, a Organização das Nações Unidas (ONU) incluiu a agricultura familiar no orçamento oficial de alimentação da COP.
Isso, por si só, já é histórico:
- R$ 1,3 milhão investidos via Companhia Nacional de Abastecimento (Conab)
- 146 toneladas de alimentos comprados pelo Programa de Aquisição de Alimentos (PAA)
- 100% da alimentação da Cúpula dos Povos vinda da agricultura familiar
- Ao menos 30% da Blue Zone e Green Zone abastecidas por cooperativas locais
- 21 mil refeições por dia servidas na Cúpula dos Povos
- 100 mil refeições em 30 dias no restaurante Sociobio (Central do Cerrado)
- R$ 1 milhão em renda direta gerada para cooperativas
- 18 toneladas de alimentos doados para cozinhas solidárias ao final

Para dar conta dessa operação, a Conab abriu excepcionalmente a Unidade Armazenadora de Ananindeua: um galpão com capacidade para 500 toneladas, dois contêineres refrigerados e recebimento diário sem cobrança de taxa.
Era a dispensa do evento: hortaliças colhidas no dia dividindo espaço com pescados, frangos, polpas e farinhas vindas de dezenas de territórios.
Quem alimenta a COP alimenta o mundo
No meio de tanta estrutura, uma pergunta continuava na minha cabeça: “Quem está alimentando a conferência?”
Foi essa pergunta que me levou à Santa Bárbara, a 70 km de Belém, para conhecer Maria de Sales, agricultora que, mesmo cultivando em solo arenoso, faz brotar jerimuns, carambolas, inhames, ariás e açaís.
Ela me mostrou seus mais de 150 jerimuns recém-colhidos, me levou até os pés de açaí carregados e disse: “Não é uma belezura?”
E depois: “Se antes eu não dava para os meus filhos, hoje eu tenho. Isso aqui é orgulho.”

Maria é uma entre milhares de agricultoras que disponibilizou seus alimentos orgânicos para a COP30. Quando perguntei como ela se sentia sabendo que seu alimento estava servindo delegados do mundo inteiro, ela respondeu: “Eu fico feliz. Essa terra abençoada que Deus me deu está alimentando pessoas.”
Essa resposta é, em si, um editorial sobre justiça climática. Veja o que mais ela me contou aqui.
Comida é política pública, e política pública é clima
Fui atrás da comida da Maria de Sales na COP30 e encontrei o restaurante Sociobio, dentro da Blue Zone, no qual almocei por R$ 40, buffet à vontade, comida fresca, tudo da agricultura familiar. Nada mais coerente para uma conferência sobre clima. A alimentação da COP30 não foi só logística — foi posicionamento político.

Era sobre mostrar que o país que saiu do Mapa da Fome pode e deve liderar uma agenda global que una comida, clima e justiça social.
Fiz um vídeo contando mais sobre agricultura familiar na COP30, assista aqui.
A palavra da vez é adaptação
Se existe uma tecnologia capaz de enfrentar extremos climáticos, proteger a biodiversidade, reduzir custos, regenerar solo, segurar água e gerar renda local, essa tecnologia tem nome: agroecologia.
Agroecologia é um jeito de produzir alimentos inspirado na natureza, mas também é um jeito de organizar relações humanas. Ela combina diversidade de cultivos, solo vivo e manejo ecológico com algo que nenhuma técnica agrícola, sozinha, entrega: partilha justa entre todos os envolvidos.
Agroecologia não se limita ao “como plantar”. Ela transforma o “como nos relacionamos” com a terra, com a comida e uns com os outros.
Quando você come algo vindo da agricultura familiar agroecológica, você está:
- reduzindo emissões,
- favorecendo a biodiversidade,
- fortalecendo culturas e saberes,
- financiando adaptação climática.
Poucas ações cotidianas têm impacto tão direto e profundo.

5 transformações que a COP30 tem no seu prato:
Se antes parecia distante, a 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (COP30) trouxe na agenda um dia dedicado ao debate sobre agricultura no dia 19 de novembro, e o que vi por lá:
1. Comida de verdade ganha status de política climática
A alimentação deixou de ser tema periférico e entrou oficialmente na agenda climática. Prova disso é que o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) foi atualizado e, a partir de janeiro de 2026, 45% das compras de alimentos das escolas públicas deverão vir da agricultura familiar, um salto histórico em relação aos 30% anteriores.
Por que isso muda o seu prato: Quando alimentação passa a ser tratada como política climática e compra pública obrigatória, governos são pressionados a abastecer escolas, universidades, hospitais e cozinhas solidárias com alimentos frescos e locais. Isso reorganiza mercados, reduz ultraprocessados e aproxima quem come de quem produz.
Em outras palavras: mais comida de verdade na rotina, de forma democrática.

2. Preço justo se torna estratégia de adaptação
Ao comprar direto de agricultores sem atravessadores, a Conab aumentou a renda de quem produz e reduziu custos da operação.
Por que isso muda o seu prato: Cadeia curta significa alimentos mais baratos e acessíveis. Se esse modelo se ampliar, feiras, restaurantes populares e políticas públicas passam a oferecer comida fresca por preços mais justos — e isso chega ao bolso das famílias.
3. Agroecologia ganha reconhecimento como tecnologia de futuro
A Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) defendeu publicamente na COP30 que sistemas agroalimentares sustentáveis e regenerativos, especialmente os baseados na agricultura familiar agroecológica devem ocupar o centro da ação climática global. Ou seja: a agroecologia saiu do nicho e entrou na política internacional como tecnologia estratégica.
Por que isso muda o seu prato: Quando a agroecologia ganha reconhecimento institucional, ela passa a receber financiamento, pesquisa, assistência técnica e prioridade nas compras públicas. Isso significa mais alimentos nutritivos, sem veneno, cultivados em ambientes que regeneram o território e que chegam à sua mesa por cadeias mais curtas, mais locais e mais justas. No longo prazo, o prato fica mais saudável, mais diverso e menos dependente de sistemas frágeis e poluentes.
4. Solo restaurado = comida garantida
O Acelerador RAIZ (Resilient Agriculture Investment for Net-Zero Land Degradation) foi lançado para restaurar terras agrícolas degradadas em escala global. A conta é simples: o mundo tem 1 bilhão de hectares degradados; recuperar 10% dessa área já garantiria alimento para 150 milhões de pessoas.
Por que isso muda o seu prato: Restaurar solo significa mais produção de comida, estabilidade de oferta e menos vulnerabilidade às mudanças climáticas. É segurança alimentar real — não teoria.

5. A agricultura familiar entra no centro da transição climática
O PAS TERRA (Planos para Acelerar Soluções – TERRA) colocou a agricultura familiar, a agroecologia e a agrofloresta como pilares da ação climática global. Fortalece cooperativas, abre mercados, amplia acesso a sementes nativas, incentiva compras públicas e cria redes de formação.
Por que isso muda o seu prato: Quando agricultores familiares têm acesso a mercados, crédito e políticas públicas, eles produzem mais, melhor e com estabilidade. Isso significa diversidade na mesa, sabores locais, renda no campo e menor dependência de cadeias longas e frágeis.
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Quando cultura vira política (e política vira comida)
Saí da COP30 com a sensação de que temos potenciais para muitos outros açaís, produtos vindos da floresta que conquista o mundo todo.
Porque no fundo, o que vimos em Belém é que a transição climática é também a articulação que leva os jerimuns da Maria de Sales para a cozinha que serve 21 mil refeições por dia; é o armazém que guarda alimentos como quem guarda futuro; é a cultura que escolhe por “comida de verdade”.
Foi a cultura que levou o açaí para o mundo. Mas é a política, e especialmente a política alimentar, que vai decidir se teremos muitos “açaís” possíveis daqui para frente. E é por isso que o nosso prato importa.
Porque ele é onde essas duas forças se encontram: o que desejamos e o que escolhemos sustentar.
Se a COP30 mudou alguma coisa, não foi apenas a logística da alimentação de um evento global. Foi o lembrete de que transformar sistemas alimentares começa também no cotidiano, no gosto, no afeto, na cultura, e depois, só depois, na economia.

