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O Pantanal e outras zonas úmidas são heroínas climáticas esquecidas

O Pantanal e outras zonas úmidas são heroínas climáticas esquecidas

Além de estocar mais carbono do que as florestas planetárias, também abrigam biodiversidade, povos indígenas e tradicionais

As áreas úmidas mundiais abrigam grande biodiversidade, purificam a água, regulam enchentes e armazenam mais carbono do que todas as florestas do planeta juntas. Ou seja, são ambientes cuja conservação é indispensável no combate à crise do clima.

Contudo, pântanos, turfeiras e manguezais são eliminados pela mão humana num ritmo alarmante, alerta um novo relatório da ong Environmental Justice Foundation (EJF), lançado em Brasília (DF) em parceria com a Delegação da União Europeia no Brasil.

“Já perdemos mais de nove em cada dez áreas úmidas no mundo. É o tipo de ecossistema mais degradado do planeta”, denunciou Bráulio Dias, diretor de Conservação e Uso Sustentável da Biodiversidade no MMA (Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima).

Segundo o documento, esses ecossistemas cobrem hoje apenas 6% da superfície terrestre, mas prestam serviços ambientais, climáticos e econômicos estimados em mais de US$ 70 trilhões anuais, equivalentes a R$ 392 trilhões ou quase quarenta vezes o PIB (Produto Interno Bruto) do Brasil, do ano passado.

“As áreas úmidas são grandes cofres de carbono que estão sendo abertos por secas e queimadas”, explicou a bióloga Luciana Leite, representante da EJF no Brasil e doutora em Ecossistemas Florestais e Sociedade pela Universidade do Oregon (Estados Unidos).

“Se a degradação continuar, poderemos liberar até 40% do carbono que precisamos manter no solo para limitar o aquecimento global a 2°C”, alertou. “Ou seja, se perdermos essas áreas, perderemos também o equilíbrio climático global”, resumiu.

Dar cabo das áreas úmidas globais pode levar à perda definitiva do equilíbrio climático. Foto: Zig Koch

Pantanal sob pressão

O Brasil concentra algumas das maiores áreas úmidas do mundo, incluindo as turfeiras da Amazônia e o Pantanal, reconhecido como o maior sistema continental desse tipo. Mas ele enfrenta uma combinação sem precedentes de secas severas, ondas de calor e incêndios.

“Desde o ano 2000, há uma tendência clara de diminuição da chuva e aumento das temperaturas”, explicou Renata Libonati, professora na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e coordenadora na mesma instituição do Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais (Lasa).

Segundo ela, além do Pantanal ter aquecido de 3°C a 4°C médios nas últimas quatro décadas, se multiplicaram eventos climáticos fora da curva. Em 2020, quase 4 milhões de ha queimaram – ou 30% do bioma –, deixando mais de 17 milhões de animais vertebrados mortos.

“E 70% dessas queimadas ocorreram em apenas 44 dias, combinando seca e calor extremos”, destacou. “Além disso, a quase totalidade dos incêndios se deve a ações humanas”, lembrou Libonati.

Nos últimos anos os incêndios persistiram, contudo, as perigosas tendências têm origens também fora do Pantanal. Dias lembrou que o sobe e desce das águas que mantêm as riquezas ambientais e humanas do bioma depende de rios que nascem no Cerrado e da umidade transportada da Amazônia.

“A degradação nesses outros biomas ameaça o próprio abastecimento de água do Pantanal”, ressaltou o doutor em Zoologia pela Universidade de Edimburgo (Reino Unido).

Um tuiuiú (Jabiru mycteria) tenta proteger seu ninho durante os incêndios de 2020 no Pantanal. Foto: Marcelo Camargo / Agência Brasil

Ciência aponta o colapso

Analista de conservação do WWF-Brasil e parte do projeto MapBiomas Água, Maria Eduarda Coelho contou que de 1985 a 2024, o Pantanal perdeu 75% das áreas permanentemente alagadas. “O pulso hídrico está cada vez mais curto e as secas, mais longas e intensas”, descreveu.

Ela destacou também o forte avanço do agro sobre áreas naturais. Mais da metade das áreas abertas nos últimos 30 anos substituíram ecossistemas intactos, mesmo com terras já disponíveis. “É uma conversão oportunista, não produtiva”, disse. “Podemos aumentar a produtividade sem derrubar mais árvores.”

Além desses impactos, governos e setor privado arregaçam as mangas para consolidar uma hidrovia no Rio Paraguai, o maior canal de água do Pantanal, sobretudo para a exportação de itens como soja, carne e minérios. A empreitada também aumentará a produção dessas commodities no bioma.

“Implantar a hidrovia será o fim do Pantanal”, destacou Dias.

Consolidar a hidrovia no Rio Paraguai pode ferir de morte o Pantanal. Foto: Semadesc/MS / Divulgaçã

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Resistência e soluções

Entre os biomas brasileiros, o Pantanal tem uma das menores parcelas abrigadas dentro de unidades de conservação – apenas 5,68% –, só à frente do Pampa – com 2,96%. Para começar a mudar esse quadro, o governo quer ampliar o Parque Nacional do Pantanal Matogrossense e a Estação Ecológica de Taiamã.

“Também há estudos para uma RDS [Reserva de Desenvolvimento Sustentável] e uma terra indígena próxima ao Parque Nacional do Pantanal Matogrossense”, informou o presidente do ICMBio, Mauro Pires.

Ele também reforçou a importância do manejo do fogo para proteger o bioma. “Nas áreas onde o manejo integrado foi aplicado, o incêndio não aconteceu ou foi de baixa intensidade. Isso prova que é possível conviver com o fogo de forma controlada”, avaliou.

Pires afirmou que, ano passado, “mais de um milhão de hectares” não queimaram no Pantanal graças a uma articulação prévia entre ministérios, governos estaduais, brigadistas e comunidades locais. “A lição é clara: prevenção é o caminho”, concluiu.

Enquanto isso, comunidades locais ajudam igualmente a manter vivo o Pantanal. Diretora da Anistia Internacional Brasil, Jurema Werneck, lembrou exemplos de mulheres que lideram a conservação de espécies emblemáticas do bioma, como a arara-azul e a anta.

“Elas mostram que o cuidado com a biodiversidade também é uma luta por justiça social e sobrevivência”, avaliou. “As mulheres pantaneiras não esperam líderes globais agirem. Estão desenvolvendo soluções próprias para proteger a vida diante da seca, do fogo e da fome”, afirmou.

Uma onça-pintada (Panthera onca) no Parna do Pantanal Matogrossense. Foto: Marcos Amend

Um chamado global

A embaixadora da União Europeia Marian Schuegraf reforçou que a conservação das áreas úmidas é “fundamental na luta contra as mudanças climáticas”. Segundo ela, a parceria com o Brasil “aproxima o global e o local” e valoriza iniciativas como a Lei do Pantanal, recentemente sancionada pelo presidente Lula.

Como ((o))eco mostrou, projetos de lei tramitando no Congresso querem alinhar essa norma a avanços já acordados em legislações estaduais, evitando retrocessos que ponham o Pantanal em risco.

Diante da necessária maior proteção de ambientes, populações indígenas e tradicionais, ongs e cientistas apelam para que as áreas úmidas sejam lembradas em negociações como a COP 30 do Clima. “De nada adianta um pacto global de emissões se continuarmos perdendo carbono aqui”, disse Luciana Leite.

Além das entidades acima citadas, também participaram do lançamento do relatório da EJF – baseado em mais de 300 referências científicas – SOS Pantanal, Wetlands International e Documenta Pantanal.