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Novo Regime Climático: a agricultura não só terá de se adaptar, como também terá de mudar

Novo Regime Climático: a agricultura não só terá de se adaptar, como também terá de mudar

Ondas de calor e secas repetidas, inundações catastróficas: em todo o mundo, os desastres ligados às mudanças climáticas estão atingindo duramente os agricultores, que não têm escolha a não ser se adaptar.

Em Bangladesh, os agricultores que sofrem com a elevação do nível do mar criam hortas flutuantes e semeiam arroz tolerante ao sal. Na Índia, por falta de água, os agricultores abandonam o arroz para plantar milheto e leguminosas. Nos Estados Unidos, muitos agricultores são forçados a modificar sua irrigação. Na França, o sorgo, planta de clima quente que requer pouca água, agora é cultivado em Ile-de-France, ao passo que em várias regiões os agricultores optam por variedades de cereais e cepas mais resistentes ao calor.

Será que essas adaptações locais serão suficientes quando profundas mudanças atingirem o mundo agrícola? Nos últimos anos, a perturbação dos ciclos de precipitação, as secas e os eventos violentos mais frequentes (tempestades, inundações, ondas de calor intensas) já provocaram a destruição generalizada de culturas (arroz em Bangladesh, milho no Centro-Oeste estadunidense…). Na Europa, as perdas de safras devido a secas e ondas de calor triplicaram em cinquenta anos.

Nos próximos anos, esses perigos aumentarão, assim como a falta crônica de água e o aumento das temperaturas. As culturas de subsistência (feijão, mandioca, amendoim, milho, gergelim, batata-doce, trigo, etc.) dos pequenos agricultores em oito países da África Subsaariana podem diminuir em 80% até 2050, estima o Fundo Internacional para o Desenvolvimento Agrícola (Fida), que apela para a diversificação das variedades privilegiando as menos exigentes (milheto, sorgo, etc.). Nos Estados Unidos e no México, o estresse hídrico, que já afeta boa parte das fazendas, reduzirá as colheitas, principalmente de milho, cuja produção mundial deverá diminuir, alerta a Nasa.

A queda de certas produções afetará a oferta. Já em maio passado, a Índia, cuja agricultura está muito exposta aos riscos climáticos, teve que interromper suas exportações de trigo, porque uma onda de calor precoce comprometeu parte da produção. No mesmo mês, a Malásia deixou de exportar sua carne de frango, dizimada pelo intenso calor.

Finalmente, a mudança climática levará a uma redistribuição geográfica das culturas. As variedades mediterrâneas já estão sendo produzidas no norte da Europa – a Dinamarca e a Grã-Bretanha produzem vinho, o norte da Alemanha damascos e nectarinas –, ao passo que a Itália cultiva frutas tropicais (manga, mamão…).

Uma oportunidade para alguns… mas perdas para outros: o café pode se desenvolver na China ou nos Estados Unidos, mas deve declinar no BrasilIndonésia e Colômbia. E se aparecerem áreas cultiváveis nas regiões nórdicas, parte do norte da África e do Oriente Médio certamente se tornará estéril.

Reduzir as emissões de metano

A era histórica de aquecimento global em que vivemos abre, portanto, um período de incertezas para a agricultura. A adequação das variedades será essencial, mas não suficiente, pois além de um certo nível de aumento das temperaturas e da falta de água, essa adaptação certamente atingirá seus limites.

Na realidade, o mundo agrícola também terá que se questionar. Será capaz de continuar seguindo um modelo que tem alguma responsabilidade pela degradação do estado do planeta, quando esgota o solo, reduz drasticamente a biodiversidade (pesticidas), participa do desmatamento, consome demais e polui as reservas hídricas (a agricultura é responsável pelo consumo de 92% da água no mundo) e ela mesma contribui para o aquecimento global?

A atividade agrícola esteve, juntamente com a extração florestal e outros usos da terra, na origem de 23% das emissões globais de gases de efeito estufa de 2007 a 2016, lembra o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC). Ela libera dois gases com maior poder de aquecimento que o CO2: o óxido nitroso, proveniente de fertilizantes nitrogenados e do esterco, além do metano.

Segundo maior fator de mudança climática depois do CO2, e responsável por um quarto do aquecimento global, 40% das emissões globais de metano vêm da agricultura e da pecuária. É por isso que o IPCC recomenda uma redução acentuada do rebanho bovino, sua principal fonte.

Agrossistemas resilientes

Mudar para reduzir emissões e adotar práticas mais sustentáveis é um desafio ainda mais essencial para a agricultura, pois é a primeira a sofrer com o aquecimento global. O que alguns agricultores já entenderam: da Espanha à Índia, do Canadá a vários países africanos, um certo número está se convertendo à agroecologia em suas várias formas (agricultura regenerativa, permacultura, agrofloresta, agricultura de orçamento zero…). Essas práticas possibilitam tanto a adaptação às mudanças climáticas quanto a sua desaceleração.

Assim, a plantação de árvores e sebes protegem as culturas do calor e o solo da erosão e facilitam a infiltração da água das chuvas. A diversificação e a rotação de culturas mitigam os efeitos dos riscos climáticos e melhoram a qualidade do solo. O mesmo vale para a redução (ou mesmo a eliminação) da lavragem da terra, a generalização da cobertura vegetal, o uso de adubos verdes e sementes locais, a coleta da água das chuvas, ao passo que a associação de determinadas plantas repele pragas cujo número tende a aumentar.

Esses modelos virtuosos respeitam a natureza e a deixam agir. E seus resultados são convincentes: restauram o solo, melhoram a biodiversidade e preservam as águas subterrâneas. Assim, criam ecossistemas agrícolas a temperaturas mais baixas, resistentes a eventos extremos e capazes de armazenar o CO2. Não surpreende que o IPCC defenda a expansão desses agrossistemas.

Cultivar sem destruir, produzir em interação inteligente com o meio ambiente, reduzir as emissões de gases de efeito estufa e capturar mais carbono: esses são os desafios da agricultura no século XXI. Mas, se não se mexer rapidamente, a mudança climática a atingirá mais severamente ao longo dos anos, provavelmente questionando sua capacidade de fornecer alimentos para 9,7 bilhões de pessoas em 2050.