Novo mapa global do relevo ajuda a prevenir desastres e planejar cidades

Com base em dados de satélite e técnicas avançadas de aprendizado de máquina, cientistas do Departamento de Geofísica do IAG-USP e de órgãos da Holanda, Canadá, Luxemburgo e Alemanha desenvolvem o GEDTM30, um modelo digital de terreno com alcance global, resolução refinada e acesso gratuito
Modelos digitais de terreno podem parecer coisa de especialista, porém, entender com precisão o relevo de uma região pode fazer toda a diferença na prevenção de desastres, no planejamento urbano e na adaptação às mudanças climáticas. É isso que defende o geólogo Carlos Henrique Grohmann, professor do Departamento de Geofísica do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG-USP), que acaba de lançar, com um grupo internacional, um novo modelo digital de terreno com cobertura global e licença de uso totalmente aberta.
O modelo GEDTM30 é apresentado em estudo publicado em 24 de julho de 2025 na revista científica Peer J Life & Environment. Além de Carlos Grohmann, do IAG-USP, os demais autores são Yu-Feng Ho, Leandro Parente, Martijn Witjes e Tomislav Hengl, do OpenGeoHub, da Holanda; John Lindsay, da Universidade de Guelph, no Canadá e Hannes Reuter, do escritório Eurostat, da União Europeia, em Luxemburgo e do Gixperts, da Alemanha.
Os autores explicam que o novo modelo representa um marco na forma como a topografia da Terra: gratuito, aberto, com alta resolução espacial (cerca de 30 metros) e resultado da fusão inteligente de diferentes fontes de dados. A novidade deve beneficiar desde pesquisas ambientais e previsão de desastres até aplicações em saúde pública, agricultura e urbanismo.
Diferentemente de outros modelos anteriores, que ou são pagos ou apresentam limitações geográficas ou técnicas, o GEDTM30 foi desenvolvido com base exclusivamente em dados abertos, como os sistemas Copernicus (da União Europeia) e ALOS World3D (do Japão), combinados com informações de altura coletadas por satélites com tecnologia LiDAR da NASA (ICESat-2 e GEDI).
Para atingir precisão e escala global ao mesmo tempo, os cientistas usaram uma abordagem inovadora chamada aprendizado por transferência. Nessa técnica, um modelo global é treinado com bilhões de pontos de dados de elevação e depois foi ajustado em nível regional com dados locais sempre que disponíveis. O resultado é um mapeamento que mantém a consistência em escala planetária, mas com ganhos significativos de precisão em regiões específicas.
“Criamos um modelo global e, onde possível, fizemos ajustes locais para melhorar a acurácia. Nós sempre quisemos um modelo de terreno global. Que fosse um modelo que mostrasse a superfície embaixo das árvores, sem a área urbana. Isso porque, por exemplo, você quer olhar a Amazônia sem a floresta. Quer saber onde realmente estão os rios e como o terreno se comporta ali”, comenta o geólogo Carlos Henrique Grohmann.
Do topo da árvore até o chão
Modelos digitais de elevação (DEMs, na sigla em inglês) são imagens tridimensionais da superfície terrestre. Podem ser feitos com dados obtidos por sensores em terra, drones, aviões ou satélites. O que muitos não sabem é que a maioria dos modelos disponíveis até hoje representam apenas a superfície visível, como o topo das árvores, telhados e postes.
“O sinal de radar não consegue atravessar a vegetação. Não consegue atravessar concreto. Então você tem o topo das árvores e o topo das áreas construídas”, relata Grohmann. Desde o ano 2000, com a Missão de Topografia por Radar do Ônibus Espacial (SRTM), da NASA, a ciência passou a contar com modelos globais da superfície. No entanto, só recentemente, com a evolução da inteligência artificial e de técnicas de aprendizado de máquina, foi possível filtrar esses dados para tentar “reconstruir” o chão real sob a vegetação.
Principais resultados
A performance do GEDTM30 foi testada em comparação com modelos consagrados, como o MERIT DEM, o FABDEM e o FathomDEM. Embora este último ainda tenha ligeira vantagem em alguns critérios, como erro médio quadrático (RMSE) vertical, o GEDTM30 demonstrou desempenho notável em regiões urbanas e de vegetação densa, justamente os cenários mais desafiadores para esse tipo de mapeamento.
Na prática, o GEDTM30 reduziu o erro médio em 25,4% em áreas urbanas, 10% em regiões com cobertura vegetal moderada (10% a 50% de árvores) e 27,3% em áreas com mais de 50% de cobertura vegetal, se comparado ao modelo europeu Copernicus DEM. Isso representa um avanço considerável para aplicações como monitoramento de desmatamento, planejamento urbano e gestão de riscos naturais.
Um dado que todos podem usar
O novo modelo desenvolvido por Grohmann e colaboradores se destaca por sua licença de uso ser completamente aberta, inclusive para fins comerciais. “Os modelos FABDEM e FathomDEM não podem ser usados comercialmente. Oficialmente, você pode usar para sua pesquisa acadêmica, mas não pode usar para fins comerciais. O GEDTM30 é aberto, gratuito e pode ser usado para pesquisa ou para sua empresa, sem problema nenhum”, reforça Grohmann.
A iniciativa foi viabilizada com apoio da empresa OpenGeoHub, que forneceu a infraestrutura de processamento. Todo o código usado está disponível publicamente, no repositório GitHub. “
Por que isso importa?
A aplicação prática desses modelos vai muito além do laboratório. Eles são usados para prever deslizamentos, mapear áreas inundáveis e planejar onde (e onde não) construir. E ajudam, inclusive, a entender os impactos da mudança climática. “Um dos fatores que mais influencia os deslizamentos é a topografia”, explica o pesquisador. “Em São Sebastião, por exemplo, houve escorregamentos com 20 metros de largura. Então são menores que um pixel. Eles não vão aparecer em nosso modelo”, contextualiza Grohmann.
O geólogo defende que modelos como o GEDTM30 sejam integrados a políticas públicas e ferramentas de gestão de risco. “O modelo de terreno pode ser usado para calcular a inundação. Em teoria, ele dá um resultado um pouco melhor que os de superfície porque não tem a floresta”, explica.
E o futuro?
O grupo responsável pelo GEDTM30 pretende mantê-lo atualizado com facilidade, à medida que novos dados forem incorporados. “Ele roda tudo sozinho. Pode ser atualizado muito facilmente”, diz Grohmann. “Se chegar um dado novo, a gente só troca e manda rodar de novo”. Ainda assim, o pesquisador comenta que o modelo não substitui levantamentos locais de maior resolução, como os feitos com tecnologia LiDAR, ou altimetria a laser. “Não é um modelo que vai ser o melhor do mundo. O fato dele existir não significa que o Estado ou uma cidade não precise investir em dados de mais alta resolução”, conclui.
De acordo com os autores, um modelo como o GEDTM30 pode interessar ao gestores públicos e defesa civil para planejamento territorial e resposta a desastres; aos Cientistas ambientais, que podem usá-lo para modelagem hidrológica, erosão e mudanças climáticas/ no agronegócio, para manejo do solo, irrigação e uso da terra/ para empresas de tecnologia como foco no mapeamento, logística e georreferenciamento e aos pesquisadores em saúde. para correlações entre relevo, poluição e epidemiologia de doenças.
O GEDTM30 já está disponível para download gratuito no repositório Zenodo e pode ser acessado também via repositório oficial no GitHub.
Artigo científico
Ho YF, Grohmann CH, Lindsay J, Reuter HI, Parente L, Witjes M, Hengl T. GEDTM30: global ensemble digital terrain model at 30 m and derived multiscale terrain variables. PeerJ. 2025 Jul 24;13:e19673. https://doi.org/
Sobre o IAG/USP – O Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo é um dos principais polos de pesquisa do Brasil nas áreas de Ciências Exatas e da Terra. A missão é contribuir para o desenvolvimento do país, promovendo o ensino, a pesquisa e a difusão de conhecimentos sobre as ciências da Terra e do Universo e aspirando reconhecimento e liderança pela qualidade dos profissionais formados e pelo impacto da atuação científica e acadêmica. Na graduação, o IAG recebe em seus três cursos 80 novos alunos todos os anos. Já são mais de 700 profissionais formados pelo IAG, entre geofísicos, meteorologistas e astrônomos. Os quatro programas de pós-graduação do IAG já formaram mais de 870 mestres e 450 doutores desde a década de 1970. O corpo docente também tem posição de destaque em grandes colaborações científicas nacionais e internacionais.