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Novo documento aponta propostas para uso sustentável dos recursos naturais na agropecuária brasileira

Novo documento aponta propostas para uso sustentável dos recursos naturais na agropecuária brasileira

Estudo defende agenda integrada entre produção e conservação, alerta sobre passivo ambiental da agropecuária convencional e traz soluções para maior competitividade e resiliência às mudanças climáticas

Os desafios associados ao modelo de uso da terra predominante no Brasil, em que prevalece a monocultura em larga escala e as soluções para tornar a agropecuária uma prática mais sustentável e inclusiva, são abordados pelo Sumário para Tomadores de Decisão (STD) do Relatório Temático sobre Agricultura, Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos, lançado nesta terça-feira (16) no Rio de Janeiro. Publicado pela Plataforma Brasileira de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (BPBES), o documento foi elaborado por 35 pesquisadores, incluindo cientistas da USP, que sintetizaram o conteúdo principal com linguagem simplificada e em formato didático. O relatório compila informações científicas e casos exitosos sobre as interações entre os usos do solo e a biodiversidade no Brasil, sob a ótica do bem-estar humano e levando em conta os saberes tradicionais.

O sumário pode ser lido na íntegra neste link. Além da síntese de conhecimento sobre a temática, o texto traz propostas para um melhor manejo do capital natural no meio rural nacional. O documento visa influenciar gestores e lideranças das esferas pública e privada na tomada de decisões com foco na sustentabilidade e no equilíbrio da tríade agricultura, biodiversidade e serviços ecossistêmicos. Na USP, participaram da elaboração do documento o pesquisador Silvio Crestana, do Instituto de Estudos Avançados (IEA), Raquel Aparecida Moreira, professora da Faculdade de Zootecnia e Engenharia de Alimentos (FZEA) em Pirassununga, como coordenadores, e Gabriela Di Giulio, professora da Faculdade de Saúde Pública (FSP), uma das autoras do capítulo sobre “Trajetória histórica e panorama atual das relações entre agricultura, biodiversidade e serviços ecossistêmicos”.

O estudo que originou o relatório mobilizou ao longo de três anos 100 profissionais de inúmeras áreas, pertencentes a mais de 40 instituições distribuídas por todos os biomas do País. Benefícios gerados pela natureza que sustentam a vida no planeta, os serviços ecossistêmicos são essenciais para garantir a capacidade da produção agrícola. Água limpa, regulação do clima, manutenção da fertilidade e da estrutura do solo, polinização de culturas e controle biológico de pragas e doenças são alguns exemplos. Tão conhecidos quanto as denominações ‘potência agrícola’ e ‘País megadiverso’ são os conflitos e as dificuldades de diálogo que tendem a manter apartadas as agendas da conservação ambiental e da produção rural no Brasil.

Dimensões do impacto

Topo do ranking das nações megadiversas e detentor de um vasto e rico território que abriga 20% das espécies do planeta, o Brasil também tem solo fértil, água abundante e clima favorável para a produção de alimentos. Segmento crucial para a economia nacional, o agronegócio é responsável por cerca de 20% dos empregos formais e por mais de um quarto (27%) do Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil (R$ 403,3 bilhões em 2020). Em grande parte, é caracterizado por monoculturas em larga escala, com sistemas de irrigação intensivos e uso excessivo de insumos, fertilizantes e agrotóxicos. “O modus operandi do setor tem se mostrado insustentável, aumentando a pressão sobre o capital natural e originando grandes impactos ambientais”, pontua Gerhard Ernst Overbeck, professor do Instituto de Biociências da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e coordenador do relatório. “Isso compromete a saúde humana e afeta inclusive os serviços ecossistêmicos dos quais a atividade depende.”

Rachel Bardy Prado – Foto: Site Embrapa

Rachel Bardy Prado, pesquisadora da Embrapa Solos e também coordenadora da publicação, reforça que a escassez de recursos naturais em algumas partes do País e os efeitos sobre o clima colocam em xeque a própria abundância da agricultura brasileira. “As principais cadeias de valor de alimentos estão suscetíveis às mudanças climáticas e certas regiões poderão sofrer quedas de produtividade e alterações na aptidão para determinadas culturas”, diz o texto. Modelos projetados estimam, por exemplo, que na fronteira Amazônia-Cerrado as variações no clima regional vão comprometer a viabilidade de 74% das atuais terras agrícolas até 2060.

Dados do MapBiomas, projeto que faz o mapeamento anual da cobertura e uso da terra, além da superfície da água e das cicatrizes de fogo existentes no Brasil, revelam que, entre 1985 e 2022, a área da agricultura no Brasil cresceu 95,1 milhões de hectares (Mha). Overbeck destaca que, na maioria dos casos, isso se deu às custas da destruição da vegetação nativa, o equivalente a 10,6% do território nacional. Em 2022, a agropecuária já ocupava 33% da área do País (282,5 Mha) e suas emissões respondiam por cerca de 27% do total de 2,3 bilhões de toneladas de gases de efeito estufa (GEE) lançados pelo Brasil na atmosfera. Segundo o relatório, a tendência é a ampliação de cultivos de soja, milho e cana-de-açúcar no Cerrado e na Mata Atlântica e de áreas de pastagens na Amazônia e no Pantanal. “Essa expansão agrícola intensificará a pressão sobre unidades de conservação e terras indígenas, com impactos negativos para o meio ambiente e as comunidades locais”, diz o estudo.

Imagem: reprodução do sumário (p.11)

Imagem: reprodução do sumário (p.13)

Agricultura familiar

O potencial produtivo do País não se restringe às grandes propriedades rurais, pois a agricultura familiar é uma peça-chave no contexto agrícola nacional. “Ela responde por aproximadamente 70% dos alimentos que chegam à nossa mesa e contribui para a segurança alimentar da população”, aponta Rachel Bardy Prado. Conhecida pelo manejo conservacionista dos recursos ambientais, pelo menor uso de insumos e pela diversidade de cultivos, a agricultura familiar – que congrega pequenos produtores rurais, povos e comunidades tradicionais (PCTs), assentados de reforma agrária, silvicultores, aquicultores, extrativistas e pescadores – emprega dois terços da mão de obra rural brasileira e assegura parcela significativa da renda no campo. Em 2017, seu valor de produção foi de R$ 106,5 bilhões, enquanto a cifra da agricultura comercial convencional atingiu R$ 355,9 bilhões.

O fomento a essa modalidade de agricultura é um dos caminhos apontados para conciliar a produção agrícola com baixas emissões de carbono e com a manutenção da biodiversidade e dos serviços ecossistêmicos. No entanto, o setor ainda enfrenta dificuldades para conseguir crédito rural e assistência técnica. Segundo os pesquisadores, o simples cumprimento da Lei de Proteção da Vegetação (norma federal, instituída em 2012) evitaria, entre 2020 e 2050, a perda de 32 Mha de vegetação nativa no País. Além disso, “o aumento na produtividade das pastagens brasileiras permite atender a demanda futura por carne, culturas agrícolas, produtos madeireiros e biocombustíveis, sem a necessidade de converter mais hectare algum de vegetação nativa e ainda liberando terra para restauração em larga escala, por exemplo, na Mata Atlântica”, diz o texto.

Outras alternativas incluem o estímulo à restauração de áreas de reserva legal (RL) e de preservação permanente (APP); os incentivos econômicos e mecanismos financeiros para atividades agrícolas sustentáveis – como Pagamento por Serviços Ambientais (PSA), linhas de crédito verdes, créditos de biodiversidade, REDD+ (Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação) e mercado de Cotas de Reserva Ambiental; os programas de extensão rural com foco na agroecologia; a valorização e a disseminação de práticas e tecnologias sociais de PCTs; os sistemas de rastreabilidade de cadeias produtivas; o Sistema Plantio Direto; as florestas plantadas; o turismo rural; e o Sistema de Integração Lavoura-Pecuária-Floresta. “Contudo, para atingir a transformação desejada nos sistemas de produção agrícola, esses mecanismos precisam ser incentivados e disseminados para ganhar escala, ampliar sua abrangência nos biomas e, sobretudo, alcançar os agricultores mais vulneráveis”, ressalta Overback.

Exemplo de paisagem multifuncional na região serrana do Rio de Janeiro – Foto: Rachel Bardy

Boa governança

A transição para um modelo produtivo sustentável no Brasil requer esforços de diferentes setores da sociedade e o engajamento de múltiplas áreas do governo, como planejamento, agricultura, meio ambiente e desenvolvimento regional. “A verdadeira sustentabilidade da agricultura passa pela melhoria da qualidade de vida no campo e nas cidades, pela agregação de renda aos marginalizados, pelo aumento da soberania alimentar e pela manutenção da biodiversidade e dos serviços ecossistêmicos”, avalia Rachel Bardy Prado. Outro passo fundamental para uma boa governança agroambiental é romper a dicotomia entre produção e conservação e dissipar a falsa ideia de que a biodiversidade atrapalha o crescimento. “Em longo prazo, só teremos desenvolvimento econômico no País, e principalmente no setor da agropecuária, se conseguirmos fortalecer a biodiversidade e os serviços ecossistêmicos. Esses campos são aliados e não opositores!”, finaliza Overbeck.

A Plataforma Brasileira de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (na sigla em inglês, BPBES), lançada em 2017, reúne um grupo independente de cerca de 120 especialistas, professores universitários, pesquisadores, gestores ambientais, detentores de conhecimentos tradicionais e tomadores de decisão. Seu objetivo é produzir sínteses do melhor conhecimento disponível pela ciência acadêmica e pelos saberes tradicionais sobre as temáticas da biodiversidade e dos serviços ecossistêmicos e suas relações com o bem-estar humano, com foco nos biomas continentais do Brasil e na área marinha-costeira.

Em sua criação, a BPBES teve suporte do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), do Programa Biota da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), da Academia Brasileira de Ciências (ABC) e da Fundação Brasileira para o Desenvolvimento Sustentável (FBDS). Atualmente conta com apoio financeiro do Instituto Serrapilheira e com recursos advindos de emendas parlamentares. Conheça mais sobre a plataforma em www.bpbes.net.br.

*Da Assessoria de Comunicação da BPBES, adaptado por Júlio Bernardes

**Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado