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Mulheres de comunidades tradicionais de SE se organizam para enfrentar desafios

Mulheres de comunidades tradicionais de SE se organizam para enfrentar desafios

Estância / Indiaroba (SE). Romper com anos de patriarcado e preconceito racial são apenas alguns dos desafios enfrentados por mulheres negras. O estímulo à união e organização social tem feito da Rede Solitária de Mulheres de Sergipe, liderada pela Associação das Catadoras de Mangaba de Indiaroba (Ascamai), um modelo a ser seguido. A equipe da Eco Nordeste visitou três comunidades, nos municípios de Estância e Indiaroba, no Litoral Sul de Sergipe, e traz aqui um pouco da história da mangaba e dessas admiráveis mulheres.

Antes de tudo, é preciso apresentar o fruto da mangabeira (Hancornia speciosa) a quem não conhece. Sergipe é o maior produtor brasileiro, com quase toda extração feita de vegetação nativa. No Estado, a fruta é mais consumida na forma de sorvete e polpa. Na farmacologia, tem sido usada em larga escala por suas propriedades antioxidantes, antialérgicas, anti-inflamatórias, antitumorais, antibacterianas e efeitos gastroprotetivos e hepatoprotetivos.

Foto de duas frutas verdes com manchas vermelhas penduradas a galhos de árvore com céu azul desfocado ao fundo
A mangaba é um fruto típico da Restinga, vegetação associada à Mata Atlântica | Foto: Alice Sales

O decreto N.º 12.723, de 20 de janeiro de 1992, institui a mangabeira como a árvore símbolo do Estado de Sergipe e a Lei Nº 7.082, de 16 de dezembro de 2010, estabelece que o Estado de Sergipe reconhece as catadoras de mangaba como grupo culturalmente diferenciado e que devem ser protegidas segundo as suas formas próprias de organização social, seus territórios e recursos naturais, indispensáveis para a garantia de sua reprodução física, cultural, social, religiosa e econômica.

Nossa primeira visita foi ao Povoado de Manoel Dias, município de Estância. Lá, as riquezas naturais e conhecimentos acumulados pelas mulheres só começaram a se transformar em negócio em 2012, quando o povoado passou a compor a Rede Solidária de Mulheres de Sergipe. As frutas, tendo como carro-chefe a mangaba, passaram a se transformar em geleias, biscoitos, bolos, tortas, balas, brigadeiros, licores, compotas, frutas desidratadas, cocadas e trufas, entre outros.

As riquezas naturais, conhecimentos existentes, com a união em rede e o apoio da Petrobras, via Programa Petrobras Socioambiental, conseguiram vencer a sazonalidade e gerar escala. Muitas mulheres relatam que antes vendiam os frutos nas margens de estrada ou em feiras. A união garantiu uma maior produção; e o drible à perecibilidade dos frutos pelo congelamento da polpas e os diversos processamentos, ao mesmo tempo, agregam valor e ampliaram a validade. Tudo isso fez com que as catadoras de mangaba começaram a enxergar mais valor na atividade.

Os consumidores tanto são nativos quanto turistas. Mas, ao mesmo tempo em que o turismo aumenta a renda das mulheres catadoras de mangaba de Sergipe, outros desafios as rondam. Embora a mangabeira seja uma árvore imune ao corte por legislação federal e estadual, passível de multa no valor de R$ 1.500, os valores dos terrenos sobem e a especulação imobiliária avança sobre o território com a derrubada de mangabeiras centenárias e a perda de acesso para que as mulheres continuem a coletar os frutos, como ocorre em outras regiões do Nordeste com outros frutos, como é o caso do babaçu no Maranhão e Piauí.

A direção do Projeto pensa agora em atuar no reforço às políticas públicas para a garantia da permanência das mangabeiras de Sergipe e do acesso dessas mulheres para a colheita.

Mulheres unidas

Foto de mulher negra com cabelos presos sorri sem mostrar os dentes. Ela veste camiseta branca com a logo da Petrobras dos dois lados
Dilva de Souza Santos é a presidente da Associação das Catadoras de Mangaba do Povoado Manoel Dias, que fica em Estância, Litoral Sul de Sergipe | Foto: Alice Sales

No povoado de Manoel Dias, Município de Estância, o Viveiro Agroflorestal Comunitário é motivo de orgulho, assim como o secador solar, usado para fazer bananas passas, entre outros produtos. Ambos ficam na sede da Associação das Catadoras de Mangaba do Povoado Manoel Dias, também residência da sua presidente, Dilva de Souza Santos, 54. O viveiro tem como objetivo produzir mudas de mangabeiras e de outros frutos da Restinga e da Mata Atlântica com vistas ao reflorestamento de áreas degradadas. Para isso, é feito o contato com prefeituras e empresas.

“Nós aprendemos a valorizar nós mesmas, os produtos que temos e tivemos muitos outros benefícios. Aprendemos a dizer não para os nossos maridos”, avalia Dilva, que antes era merendeira em escola e agora conta mais lucro e menos estresse. Ela conta que nasceu em outro município e que, em 2000, mudou-se para cuidar de um sítio. “Eu só sabia colher, chupar, fazer o suco. Vendia para atravessadores. Com o Projeto, passei a ter noção do valor da mangaba. Também pesco sururu, ostra, caranguejo e vendo na beira da estrada”, conta. Para ela, a maior dificuldade enfrentada é o avanço dos condomínios que derrubam as mangabeiras e dificultam o acesso para pescar.

Katiane de Jesus Silva, 35, a tesoureira da Associação, conta que, além das vendas na beira da estrada, o que garante a renda das 43 associadas são os eventos, onde licores de mangaba, cambuí, jenipapo, maracujá e murici, entre outros produtos são comercializados. “Me tornei uma mulher vitoriosa”, completa Karina, a secretária da Associação.

Inovação constante

Foto de mulher negra de perfil sorri. Ela tem os cabelos presos e usa óculos e uma camiseta branca com logos da Petrobras e da Rede Solidária de Mulheres Sergipe
Tainara Nascimento Vidal preside a Associação das Catadoras do Povoado de Ribuleirinha, também em Estância | Foto: Alice Sales

Tainara Nascimento Vidal, 30, começou a catar mangaba aos 15 e conta que a Associação das Catadoras do Povoado de Ribuleirinha, também no município de Estância começou com dez receitas, hoje comercializa 20 produtos e não para de testar e desenvolver novos produtos para não desperdiçar nada.

Atualmente com 25 associadas, ela conta que antes não havia perspectiva, não sabiam o que fazer com as mangabas. A safra vai de janeiro a junho e elas, além de produzir diversos quitutes, congelam a fruta e a polpa para continuar a produção na entressafra.

“Isso foi uma melhoria de 100%. Quem dependia do companheiro passou a ter a própria renda e, com isso, muitas também saíram da violência doméstica. Eu não comecei o Projeto com 15 anos sabendo que era uma mulher negra e que podia ser independente. Foi tudo um processo, poder sair, viajar, contar a minha história. Ainda não dá para viver 100% da mangaba, temos a baixa estação e ainda estamos brigando pelo território que perdemos diariamente. Existe comunidade que não tem mais mangabeira, além da falta de acesso. Há cinco anos não tinha condomínio aqui. Eram áreas onde existiam mangabeiras. Se não tomarmos uma providência, vamos nos tornar uma lenda”, resume.

Da literatura à novela

Foto de mulher negra sentada em uma barco colorido na água. Ela sorri, tem os cabelos presos e usa camiseta vermelha com a logo da Rede Solidária de Mulheres Sergipe
Alícia Santana Salvador é a presidente da Associação das Catadoras de Mangaba de Indiaroba (Ascamai), que reúne 90 mulheres | Foto: Alice Sales

À Beira do Rio Real, de onde se avista o Mangue Seco, no Estado da Bahia, da Tiêta do Agreste de Jorge Amando, fica Indiaroba, onde aproximadamente 90% da população vive da pesca ou do extrativismo. Alícia Santana Salvador, 36, é a presidente da Associação das Catadoras de Mangaba de Indiaroba (Ascamai) que reúne 90 mulheres.

Fundada com 34 mulheres, em 2008, a comunidade vive basicamente da mangaba e dos mariscos e crustáceos, como camarão, ostra, aratu, siri, caranguejo e sururu. A dependência do turismo é forte, visto que é da comunidade que saem as embarcações para Mangue Seco. Só no Carnaval, a movimentação chega a 15 mil pessoas no local que conta com aproximadamente 2.000 habitantes.

Alícia adiciona à perda de território o avanço da carcinicultura (criação de camarão em cativeiro) como ameaça ao modo de viver tradicional de Indiaroba.

Organização faz a diferença

Foto de mulher branca com os cabelos presos. Ela usa óculos, uma camiseta verde e uma calça branca e está entre árvores
Mirsa Barreto é a coordenadora geral da Rede Solidária de Mulheres de Sergipe | Foto: Alice Sales

A pandemia não poupou as catadoras de mangaba de Sergipe que tiveram que lidar com dificuldades emocionais e financeiras. A retomada que está acontecendo agora só foi possível pela união e organização do grupo.

Movimento das Catadoras de Mangaba de Sergipe (MCM) começou em 2002. Em 2007 elas fundaram o primeiro movimento e em 2008 sentiram a necessidade de se organizarem em associação. Em 2010 concorreram com o primeiro projeto no Programa Petrobras Socioambiental com o objetivo de favorecer o empoderamento feminino por meio de investimento em qualificação e equipamentos. O Projeto foi até 2016 só com as catadoras de mangaba. Em 2018 com a inclusão de outro território inicia a Rede Solidária de Mulheres de Sergipe.

Foi preciso organizar grupos e formalizar associações para criar a rede. A sede operacional do Projeto fica em Aracaju e as associações nas respectivas comunidades. Quem conta essa história é Mirsa Barreto, coordenadora geral da Rede Solidária de Mulheres de Sergipe. Ela explica que atualmente sete municípios, onze associações e 432 mulheres estão cadastrados em diferentes territórios e com atuações diversas.

O negócio, segundo suas informações, começou a deslanchar a partir da parceria com a Petrobras e outras instituições, como A Universidade Federal de Sergipe (UFS). Foram criadas linhas, como a dos frutos da restinga (vegetação litorânea associada à Mata Atlântica), da qual fazem parte a mangaba, araçá e murici. Outra linha é a dos frutos de quintal.

As catadoras de mangaba trabalham com os frutos da restinga; as mulheres de Carmópolis processam os frutos de quintal dos quais fazem biscoitos, geleias, licores, cookies. Fazem também tapiocas e biscoitos de goma porque contam com uma casa de farinha; e o artesanato, em crochê, macramê, fuxico, patchwork, reaproveitamento de materiais, palha do ouricuri. Já as mulheres quilombolas de Lagamar, em Pirambu produzem cestarias, chapéus e tapetes.

Os níveis de produção estão em estágios diferentes porque as catadoras de mangaba começaram antes, em 2011. Alguns dos povoados beneficiados já se tornaram assentamentos urbanos porque cresceram a ponto de perderam as características do campo, como é o caso do Assentamento Palmeira, em Carmópolis.

Há ainda as mulheres rendeiras de Divina Pastora que produzem renda irlandesa. A tradição começou com o processo de migração quando freiras ensinaram a arte às mulheres do lugar. Essa renda irlandesa foi conferida Patrimônio Cultural do Brasil, pelo Instituto do Património Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e as rendeiras foram convidadas para um intercâmbio cultural na Irlanda.

Com o projeto, elas tiveram a oportunidade, além de desenvolver percepções e noções de direitos, organização social, gestão, marketing, autocuidado, de ampliar conhecimentos com uma designer de moda sobre persona, identidade, cores, elementos de composição a partir do contemporâneo.

Mirsa confirma o desafio do escoamento da produção, hoje reduzido a beira de estrada, principalmente no caminho para o litoral de Estância e no ponto para a travessia para Mangue Seco, feiras e eventos. Segundo suas informações, de junho de 2022 a janeiro de 2023, elas estiveram no Shopping Jardins, por meio do Instituto Paes Mendonça. Mas tiveram dificuldades com o deslocamento e horário.

A visão de quem acompanhou o trabalho do início é necessária para mostrar o que mudou na vida dessas mulheres. Por seis anos Ana Cláudia Leão foi assistente social do Projeto. “Hoje consigo ver bem o resultado do trabalho. Antes elas não tinham comunicação e não se sentiam catadoras, enfrentavam problemas semelhantes de forma isolada. Elas deram as mãos e se fortaleceram, se empoderaram, pensam juntas”.

Foto de mulher branca de cabelos médios lisos e soltos vestindo blusa de manga com estampa tropical que sorri enquanto apoia a mão no troco de uma árvore
Marcela Souza Levigard, gerente de Projetos Sociais da Petrobras se mostrou impressionada com a força da união das catadoras de mangaba de Sergipe | Foto: Alice Sales

Marcela Souza Levigard, gerente de Projetos Sociais da Petrobras, já conhecia os produtos e suas histórias, mas não as comunidades e se mostrou impressionada com o que viu: “não se trata apenas de geração de renda, mas de mulheres que se reúnem embaixo de um cajueiro para discutir organização. Isso faz toda a diferença nas vidas delas”.

Paisagens Alimentares

Na parceria atual com a UFS, há um trabalho de Turismo de Base Comunitária e um de Comunicação. Dênio Azevedo é professor do Departamento de Turismo e está empolgadíssimo com o trabalho da Rede de Mulheres Catadoras de Mangaba de Sergipe, principalmente por seu envolvimento no Projeto Paisagens Alimentares, da Embrapa Alimentos e Territórios, com sede em Maceió e que tem financiamento do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Os Roteiros de Turismo Gastronômico percorrem três estados nordestinos: Alagoas, Pernambuco e Sergipe.

Foto de homem branco com barba por fazer que usa óculos, camiseta de manga curta com listras horizontais em dois tons de azul entra árvores e plantas
Dênio Azevedo é professor do Departamento de Turismo da UFS e pesquisa o trabalho da Rede de Mulheres Catadoras de Mangaba de Sergipe para o Projeto Paisagens Alimentares, da Embrapa Alimentos e Territórios | Foto: Alice Sales

Neste processo, ele vem visitando possíveis comunidades para comporem o projeto piloto, que vai até 2025, e contemplará duas comunidades por Estado. Em Sergipe, são duas comunidades, uma no município de São Cristóvão, conhecida como a quarta cidade mais antiga do Brasil, diretamente vinculada à macaxeira e ao coco, na produção de beijus e pés de moleque, entre outras receitas; e a de Indiarobra, com as catadoras de mangaba e marisqueiras, principalmente as catadoras de aratu que têm variações de uso em diferentes pratos. “A maioria das mulheres negras”, enfatiza. “Nós damos suporte com o Projeto de Extensão Universitária Sergipanidades, de Roteiros Gastronômicos e Paisagens Alimentares (@sergipanidades79)”, ressalta.

* As jornalistas viajaram a Sergipe e convite da Petrobras