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Muita fome à noite pode ser sinal da síndrome do comer noturno; entenda o problema

Muita fome à noite pode ser sinal da síndrome do comer noturno; entenda o problema

Transtorno alimentar é marcado por falta de apetite matinal e interrupção no sono para comer. Conheça suas causas e sintomas

Você costuma assaltar a geladeira à noite? Esse hábito, se repetido apenas de vez em quando, não configura um problema de saúde. Mas, caso associado a outros fatores, como culpa e alterações na rotina, pode ser considerado um transtorno, que tem até nome: síndrome do comer noturno (SCN).

Quem sofre dessa síndrome ingere mais do que 25% a 50% das calorias diárias depois do anoitecer e após a última refeição do dia. É o que explica o psiquiatra Adriano Segal, um dos palestrantes do Congresso Internacional sobre Obesidade (ICO), que aconteceu entre os dias 26 e 29 de junho em São Paulo.

“[Há uma] anorexia matinal, ou seja, a pessoa não sente fome pela manhã”, detalha à GALILEU o médico, responsável pela psiquiatria do Ambulatório de Obesidade e Síndrome Metabólica do Serviço de Endocrinologia do Hospital das Clínicas (HCFMUSP) e membro da Comissão de Transtornos Alimentares da Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e Síndrome Metabólica (ABESO).

Depois de pular o café da manhã, quem tem o transtorno costuma almoçar algo leve ou até ficar sem comer o dia todo. “Mas, à noite, [ocorre] insônia inicial, a pessoa tem dificuldade para adormecer. [A síndrome do comer noturno] está muito associada também à obesidade”, diz o especialista.

Segundo uma revisão de estudos publicada por cientistas brasileiros em 2010, a estimativa de incidência da SCN oscila entre 0,5 e 1,5% da população americana, mas os índices aumentam para até 14% em obesos e 42% nas pessoas com obesidade mórbida.

A condição é descrita como um transtorno alimentar na 5ª edição do Manual Estatístico e Diagnóstico dos Transtornos Mentais (DSM-5), documento da Associação Americana de Psiquiatria. Ela envolve “episódios recorrentes de alimentação noturna, manifestados pela ingestão ao despertar do sono durante a noite ou pelo consumo excessivo de alimentos depois de uma refeição noturna”.

O DSM-5 afirma que, nesses casos, a pessoa tem consciência e recorda do episódio de comilança noturno. O comportamento passa a causar sofrimento e não é explicado por outro transtorno mental ou de compulsão alimentar, nem ocorre devido a normas sociais, uso de drogas ou efeitos colaterais de medicação.

Então, o que causa a síndrome?

Embora o manual de transtornos não fale de uma relação direta entre a condição e o ciclo de sono, Segal conta que o quadro é muito associado por profissionais a pessoas com depressão e com alteração do ciclo circadiano (mais conhecido como “relógio biológico”). “Ela [a síndrome do comer noturno] ainda é relativamente pouco estudada, mas tem aspectos genéticos, hereditários e comportamentais [associados]”, diz.

A SCN está relacionada, inclusive, à alteração do ritmo circadiano dos hormônios cortisol e melatonina, segundo contam a endocrinologista Claudia Cozer e a nutricionista Fernanda Pisciolaro em um informativo da ABESO (Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e Síndrome Metabólica).

“Há uma diminuição dos níveis de melatonina, dificuldade para adormecer ou se manter dormindo, assim como má qualidade do sono”, descrevem. Elas falam também em uma associação com níveis baixos do hormônio leptina no período da noite, o que pode diminuir a inibição dos impulsos de fome e aumentar a quantidade de cortisol no sangue (hormônio do estresse). Por isso, a síndrome do comer noturno é também conhecida como um transtorno do estresse.

O tratamento da SCN pode ocorrer através de intervenções comportamentais e medicação. Além de remédios psiquiátricos, uma alternativa é usar fitoterápicos e suplementação de melatonina, hormônio comumente usado para tratar insônia.

Comer noturno vs compulsão alimentar

A SNC apresenta comportamentos parecidos com o transtorno de compulsão alimentar (TCA). Contudo, na primeira, os episódios de apetite extremo ocorrem exclusivamente à noite ,e são acompanhados de anorexia matinal. À noite, a pessoa pode acordar entre 2 e 8 vezes e consumir até 2 mil kcal em vários episódios, que duram em média 3,5 minutos cada.

Enquanto na SCN a dieta noturna fica dentro dos padrões normais, no TCA há a ingestão de alimentos inapropriados, bizarros ou peculiares. “Às vezes a pessoa pode comer coisas esquisitas, não necessariamente são coisas gostosas. E não necessariamente também é em resposta a um problema emocional, a uma frustração, uma raiva, uma alegria”, diz Adriano Segal.

O médico ressalta que comer em resposta a uma alteração emocional não é necessariamente um episódio de compulsão alimentar nem sinal de transtorno. Para que o diagnóstico exista, os episódios de compulsão do TCA têm que acontecer pelo menos uma vez por semana nos últimos três meses, e precisam gerar sofrimento ao indivíduo.

Vale notar que, esses eventos de compulsão, contudo, não estão presentes só no transtorno de compulsão alimentar: também ocorrem no próprio SCN (à noite) e até em quem tem anorexia ou bulimia nervosa.

Relação com obesidade e outras doenças

A chance de ter TCA é maior em pessoas com índice de massa corporal elevado, sendo um problema comum em quem foi obeso na infância. “Pode ser que essas pessoas tenham tido uma obesidade mais precoce, tenham sido expostas a mais dietas e a mais tratamentos inadequados para perder peso. Isso pode criar uma bagunça em termos de homeostase, de equilíbrio fisiológico, de controle de apetite, de controle de peso e tudo mais”, avalia Segal.

Há ainda uma série de doenças relacionadas ao transtorno de compulsão alimentar — tanto clínicas, como diabetes e hipertensão, quanto psiquiátricas, como o transtorno bipolar. “A chance de pacientes com transtorno bipolar terem transtorno alimentar chega a 50%”, alerta o médico, acrescentando que é frequente a associação do quadro com ansiedade, estresse pós-traumático e até déficit de atenção e hiperatividade.

O psiquiatra traz o exemplo do caso de uma mulher que ele próprio atendeu logo no início do Programa de Tratamento de Transtornos Alimentares (Ambulim), lançado em 1992 pelo SUS. “A gente tinha uma paciente naquela época, que tinha transtorno bipolar com TCA. Ela tinha contas com agiotas para pagar o que ela comia nos bares. Nos quadros eufóricos, às vezes começava a revirar lixo para comer. Era uma pessoa com nível superior, advogada”, recorda.

O médico conta que, certa vez, atendeu um homem que foi submetido a uma cirurgia bariátrica, e, no dia seguinte após a alta, foi a um rodízio de carne. “Por sorte, fizeram nele uma técnica que permitia a entrada de muita comida no estômago. E o cirurgião era muito bom, então os pontos estavam bem baixos. Ele podia ter morrido na churrascaria”, relata.