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Mineração em alto mar chega a momento decisivo em meio a polêmicas sobre suas promessas e riscos

Mineração em alto mar chega a momento decisivo em meio a polêmicas sobre suas promessas e riscos

Com menos de um ano para que a mineração comercial seja liberada, a ideia de uma moratória internacional ganha musculatura com a adesão de países e grandes empresas

De 1º a 5 de agosto, Kingston, capital da Jamaica, vai receber representantes de 168 países e da União Europeia para a 27ª reunião da Assembleia da Autoridade Internacional dos Fundos Marinhos (ISA, na sigla em inglês). Não é exagero dizer que as decisões que serão tomadas nesses cinco dias serão decisivas para futuro de mais de três quartos do planeta.

Embora seja uma organização relativamente obscura para o público em geral, a ISA tem mandato – sob a autoridade da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (Unclos) – para fixar as regras de exploração mineral nos leitos dos mares que não se encontrem sob jurisdição de nenhum país. No linguajar, um tanto dramático, adotado pela Unclos, esse espaço é chamado de “a Área” e corresponde a cerca de 54% dos oceanos.

Em azul no mapa, as áreas sob autoridade da ISA (Autoridade Internacional dos Fundos Marinhos) — Foto: Reprodução/ISA

Em azul no mapa, as áreas sob autoridade da ISA (Autoridade Internacional dos Fundos Marinhos) — Foto: Reprodução/ISA

Mas o que realmente torna a próxima reunião da Assembleia da ISA particularmente importante é que ela poderá escancarar de uma vez por todas as portas dos oceanos do mundo inteiro para a mineração em larga escala. Hoje, ainda não existe atividade de porte comercial em alto mar, mas isso pode mudar em breve.

Em meados do ano passado, Nauru – uma nação insular do Pacífico com menos de 11 mil habitantes – solicitou a aprovação da ISA para começar a explorar o fundo do mar em parceria com a startup canadense The Metals Company. O alvo é a Zona de Clarion-Clipperton (CCZ), um trecho de 4,5 milhões de quilômetros quadrados do oceano Pacífico localizado entre o México e o Havaí, sabidamente rico em minerais.

Isso disparou uma regra que obriga a organização internacional a fixar regras para a atividade em, no máximo, dois anos ou permitir que a mineração comece mesmo de forma completamente desregulada. “Ninguém pode negar [a Nauru] (…) o direito de começar a explorar comercialmente os minerais na Zona de Clarion-Clipperton”, afirma Sandor Mulsow, professor da Universidade Austral do Chile e ex-diretor do Escritório de Recursos e Monitoramento Ambiental da ISA.

O pesquisador se tornou um crítico da atuação da ISA que, segundo ele, hoje está “100% inclinada na direção da exploração” dos oceanos. “O problema é que a ISA tem dois mandatos: um que exige a preservação para as futuras gerações; e outro que fala em ‘desenvolver’ os recursos minerários. São dois mandatos contraditórios”, diz.

Não quer dizer que seja inevitável. Pelo tamanho do estrago que pode causar ao meio ambiente, a ideia de extrair metais do fundo do oceano em larga escala é bastante controversa. Tanto que nos últimos meses a possibilidade de uma moratória ganhou musculatura.

Só nas últimas semanas: o governo do Chile mandou uma carta à ONU propondo um prazo de 15 anos antes que qualquer operação de porte seja autorizada; uma aliança internacional anti-mineração liderada por Palau, Fiji e Samoa foi lançada; e o presidente francês, Emmanuel Macron, aproveitou a Conferência dos Oceanos da ONU, em Lisboa, para fazer um discurso pró-moratória.

Até mesmo algumas das companhias multinacionais que teriam muito a ganhar com o aumento da oferta de minerais no mercado internacional se posicionaram contra. BMW, Google, Renault, Samsung e Volvo firmaram um compromisso proposto pela WWF.

“A comunidade internacional está muito preocupada com a futura exploração do mar profundo porque não se sabe o impacto [ambiental] que isso pode causar”, esclarece o professor do Instituto Oceanográfico da USP Frederico Brandini, que, entre 2015 e 2019, coordenou pelo lado brasileiro o programa Security of Supply of Minerals Resource (SoS Minerals), que tentou determinar a origem dos depósitos minerais submarinos em colaboração com pesquisadores do Reino Unido.

Interesse econômico e promessa de acelerar a transição energética

Do outro lado da balança, contudo, há não só grandes interesses econômicos como também promessas difíceis de ignorar. Segundo os proponentes da mineração em alto mar, se quisermos realmente viabilizar a transição energética a tempo de evitar o pior das mudanças climáticas precisamos acessar as reservas de minerais acumuladas há milhões de anos no fundo dos oceanos, principalmente na forma de nódulos e crostas polimetálicas.

Os nódulos – aglomerados sólidos com formato aproximado de batatas – são a grande promessa para o momento. Eles ocorrem a 3.000 metros de profundidade ou mais e têm altas concentrações de manganês, níquel, cobalto e cobre – metais usados na produção de baterias de alta potência, necessárias para a eletrificação no setor de transportes.

“O que está atraindo todo esse interesse [para a mineração de águas profundas] agora é o mercado que deve surgir para níquel e cobalto na produção de baterias para carros elétricos”, explica Matthew Gianni, cofundador da Coalisão para Conservação do Mar Profundo (DSCC), que congrega mais de uma centena de ONGs e entidades da sociedade civil dedicadas à preservação do mar.

É bem possível, contudo, que a explosão na demanda acabe não se confirmando com a intensidade que se imaginava poucos anos atrás. “Temos visto investimentos muito grandes em tecnologias (…) para criar baterias sem cobalto e níquel”, prossegue Matthew.

A maior fabricante de carros elétricos do mundo, a chinesa BYD, vem apostando em baterias de lítio-ferro-fosfato (LFP), que não usam nenhum dos dois, e a icônica montadora norte-americana Tesla também está se movendo nessa mesma direção. “O ferro e o fósforo são mais baratos e seguros do que o níquel e o cobalto”, complementa o ativista, acrescentando que a performance das baterias LFP vem melhorando e se aproximando das alternativas mais caras.

Outra promessa: oferta de terras raras

Mas a mineração de águas profundas oferece outras promessas. Uma delas seria a de multiplicar a oferta das chamadas terras raras – um conjunto de elementos fundamentais para a indústria de tecnologia de difícil extração e cuja produção é dominada pela China.

“As fontes de energia limpa, como a eólica e a fotovoltaica, e as novas tecnologias necessitam de uma grande quantidade de terras raras”, diz o geólogo do Instituto Oceanográfico da USP Luigi Jovane, outro dos líderes do Programa SoS Minerals. “Outros países estão correndo atrás de produzir [terras raras], mas a China continua tendo o virtual monopólio”, completa.

A saída para o impasse poderia vir do mar. Segundo Luigi, as crostas polimetálicas têm concentrações desses elementos muito superiores às encontradas em terra firme. “Como a concentração é mais alta, o impacto, ao menos do ponto de vista da metalurgia [para extrair os elementos do minério], seria menor. Mas a gente não sabe qual seria o impacto da mineração em si. São duas fontes de impacto que precisam ser avaliados em conjunto”, pondera o pesquisador.

Matthew é cético sobre a viabilidade da mineração de elementos de terras raras em águas profundas. Primeiro porque – ao contrário do que o nome diz – eles não são realmente raros, só são difíceis de extrair dos minérios onde estão presentes. Depois, porque sairia caro. “Não sei de ninguém que esteja falando de extração de terras raras de forma economicamente viável em águas profundas”, diz.

Para Sandor, ex-diretora da ISA, incomoda o contínuo deslocamento nas justificativas para minerar em alto mar. “Primeiro o produto seria o cobre. Depois, o níquel. Então, tivemos o cobalto. E, agora, as terras raras. No fim, tudo o que sabemos é que tem esse grande potencial para a mineração [no fundo do mar] que querem explorar”, critica.

Reciclagem de matérias-primas seria alternativa

Boa parte dos minerais que precisamos para dar suporte à transição energética pode muito bem já estar em terra firme e pronta para uso. A edição mais recente do relatório Global E-Waste Monitor apontou que, em 2019, mais de 53,6 milhões de toneladas de lixo eletrônico foram geradas contendo o equivalente a US$ 57 bilhões em matérias-primas. Dessas, menos de 17,5% chegaram a ser recicladas.

É tanto desperdício que um relatório recente publicado pela Iniciativa de Finanças do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente aconselha que instituições financeiras troquem investimentos em mineração de águas profundas por iniciativas que melhorem a sustentabilidade da atividade mineral em terra firme e projetos de economia circular “tornando obsoleta a demanda por minerais”.

“Já temos uma quantidade muito grande de minerais acumulada na forma de baterias e eletrônicos circulando por aí. O que precisamos é reciclar”, diz Sandor.

Impactos potencialmente desastrosos

Pelo paradigma tecnológico atual, a mineração em águas profundas seria feita com grandes equipamentos robotizados que coletariam os nódulos e/ou raspariam as crostas metálicas diretamente do leito do oceano aspirando os minerais – junto com mais um bocado de sedimentos – para embarcações na superfície, responsáveis por armazenar o material de interesse e devolver os rejeitos ao mar.

Além da destruição dos frágeis ecossistemas do leito marinho, que dificilmente conseguiriam se recuperar, outro efeito colateral é que os sedimentos gerados durante o processo formariam plumas – grandes nuvens de poeira em suspensão na água – que se espalhariam por vários quilômetros. “Um estudo feito pelo MIT aponta que as plumas de rejeito poderiam se espalhar por 1.400 quilômetros em diversas direções. Então, pode haver enormes impactos em termos de extensão espacial”, alerta Matthew Gianni.

“A pluma [de sedimentos] aumentaria a quantidade de nutrientes na água e desestabilizaria todo o ambiente”, afirma o professor Luigi Jovane, acrescentando que, por causa das correntes marinhas, os efeitos poderiam atingir ecossistemas distantes da área de coleta. “Poderia, por exemplo, chegar ao Ártico ou a Antártica, o que teria consequências potencialmente desastrosas para o meio ambiente mundial”, diz.

Os efeitos também poderiam atingir outro recurso marinho de importância vital: a pesca. “Elementos tóxicos e metais acabariam entrando na cadeia alimentar, o que poderia causar problemas para a pesca comercial. Além disso, espécies migratórias teriam suas rotas alteradas pela pluma de sedimentos e pelo barulho produzidos nas operações de mineração”, afirma Matthew.

Pesquisas em desenvolvimento

Apesar dos riscos da mineração em seu formado atual, Luigi defende a continuidade das pesquisas na área. “É algo estratégico para o mundo”, opina. É uma posição próxima a de seu colega do Instituto Oceanográfico da USP, Frederico Brandini. “O mar é a fronteira do futuro em termos de mineração”, pontua ressaltando que o Brasil não está fora da corrida.

O país tem interesse em incluir a Elevação do Rio Grande – um planalto submarino a cerca de 1.500 quilômetros da costa brasileira – em sua Plataforma Continental. A área está sob um contrato entre o governo brasileiro e a ISA para sua exploração científica e vem sendo estudada pelo do Serviço Geológico do Brasil (SBG-CPMR), estatal ligada ao Ministério de Minas e Energia responsável pela sistematização do conhecimento geológico no país.

“Desde 2015 estamos fazendo pesquisas na Elevação do Rio Grande”, diz o diretor de Geologia do órgão, Marcio José Remédio, apontando que, embora se saiba que ela é rica em minerais, uma quantificação mais precisa “ainda está em construção”.

O diretor da SBG traça um paralelo com a mineração terrestre e lembra que nem toda mina é uma cava a céu aberto com grande impacto ambiental. “Também temos minas subterrâneas a centenas de metros de profundidade com impacto menor”, compara Márcio. “Em nossa avaliação, a mineração em águas profundas ainda está no ponto de pesquisa e desenvolvimento. Ainda estamos criando uma linha de base ambiental que possa nos orientar numa eventual tomada de decisão”, diz.

Cuidado no avanço é o mínimo que se espera num assunto de tamanha importância. “O mar é a razão de existir vida na Terra. E, embora os oceanos pareçam imensos, eles representam apenas uma milésima parte do volume do planeta como um todo. É muito pouco. E por ser pouco precisa ser protegido”, defende.