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Menos açaí e castanhas: na Amazônia, mudanças climáticas já afetam bioeconomia

Menos açaí e castanhas: na Amazônia, mudanças climáticas já afetam bioeconomia

Alterações nos ciclos da região, com secas severas, ameaçam o cultivo sustentável de espécies que se transformaram fontes de renda e ajudam a preservar a floresta

Há mais de duas décadas, Paulo Sérgio Castro Alves, de 51 anos, dedica-se à produção artesanal de açaí em Santa Luzia, às margens do Rio Tapajós, no oeste do Pará. A atividade que sustenta a comunidade, no entanto, tem ficado menos produtiva nos últimos três anos.

Cada safra, que rendia até 800 latas do fruto, agora dá metade disso. Ele aponta o aumento da “secura” como um dos principais motivos.

— Antes, eu via que chovia mais no nosso verão. Dava uma chuva que amenizava e molhava as árvores. Agora, não. E todo ano parece que vai diminuindo. Aí o açaí sente, não produz tudo que poderia — conta o produtor.

Vistos como alternativa para o desenvolvimento sustentável na Amazônia, os negócios da bioeconomia sentem os efeitos das mudanças climáticas. Comunidades agroextrativistas, produtores agroflorestais e até grandes empresas que trabalham com insumos nativos têm mapeado as consequências de secas mais severas, como a de 2023.

Um estudo de pesquisadores brasileiros de cinco universidades, publicado recentemente na revista científica Biological Conservation, indica que, nos próximos 30 anos, as áreas climaticamente adequadas ao extrativismo na Amazônia Legal sofrerão um declínio de 91% de sua extensão total.

A pesquisa, que avaliou 18 espécies de árvores e palmeiras, indica que castanha-do-pará, açaí, andiroba, copaíba, seringueira, cacau e cupuaçu correm risco de desaparecer ou ter queda na produção. Entre as 56 reservas extrativistas estudadas na região, 21 correm risco de perder uma ou mais espécies exploradas.

Em Santa Luzia, Paulo diz que o período chuvoso deste ano, com menos água, reduziu a produção de açaí, já impactada pela seca do ano passado, a pior em mais de um século. Com isso, o preço do açaí, produto cada vez mais popular no país e no mundo, subiu. Uma lata que era vendida a R$ 20 passou a sair por R$ 30.

A última estiagem matou, pela primeira vez, todo o manejo sustentável de vitória-régia de Dulce Oliveira, de 52 anos. A partir das águas do Canal do Jari, também no Pará, a empreendedora há uma década transforma a planta-símbolo da Amazônia em pratos, geleias e conservas.

Dulce Oliveira, que cultiva a Vitória-Régia de forma artesanal no Canal do Jari, braço do Rio Amazonas. — Foto: Deveras Amazônia/Divulgação
Dulce Oliveira, que cultiva a Vitória-Régia de forma artesanal no Canal do Jari, braço do Rio Amazonas. — Foto: Deveras Amazônia/Divulgação

Ela teme que o nível da água do Jari, abaixo do normal para esta época, limite mais a produção, já afetada pela seca de 2023:

— Não produzimos nada durante três meses no ano passado. A água demorou a voltar à frente da minha casa, onde faço o manejo. Tivemos que buscar pequenas lagoas que ficaram da seca anterior para produzir vitória-régia. Se a seca for extrema de novo, não teremos nada este ano.

Mapeamento de riscos

Cofundadora da Deveras Amazônia, que trabalha com a cadeia da bioeconomia para venda de produtos baseados em insumos nativos, Valéria Moura, doutora em Biotecnologia pela Universidade Federal do Amazonas (Ufam), tem buscado ampliar a rede de comunidades fornecedoras, diante da escassez de alguns ingredientes. Criado por ela e dois pesquisadores, o negócio tem 24 parceiros de seis comunidades do Baixo Amazonas, que produzem cupuaçu, camu-camu, açaí, vitória-régia e flor de jambu, entre outros.

— No início, quando começamos a trabalhar, tínhamos muita matéria-prima e muito ingrediente, que até não eram aproveitados. Mas faz alguns anos que vemos uma mudança brusca, que chegou ao auge na seca passada — conta Valéria, que notou ainda diferença na qualidade de frutos e ervas.

Segundo levantamento da Embrapa, com dados do IBGE, dezoito produtos da sociobiodiversidade amazônica superaram R$ 11 bilhões em valor de produção em 2022. Desse montante, a maior parte vem de açaí, cacau e castanha-do-pará. Estudo do WRI Brasil prevê que a Nova Economia da Amazônia (NEA) pode adicionar R$ 40 bilhões anuais ao PIB da região até 2050, por meio da conservação de ativos naturais, fortalecimento da bioeconomia e agropecuária e energia de baixa emissão de carbono.

Colheita de camu-camu, fruto que faz parte da cadeia da Deveras Amazônia. — Foto: Divulgação
Colheita de camu-camu, fruto que faz parte da cadeia da Deveras Amazônia. — Foto: Divulgação

Diretor-superintendente do Sebrae do Pará, Rubens Magno lembra que os negócios afetados pelo clima são justamente aqueles que, além de fomentar a economia para comunidades da região, geram renda com “floresta de pé”, ajudando a preservar a Amazônia.

Os efeitos da mudança no clima estão também no radar de grandes empresas. Com uma cadeia de fornecedores de castanha do Brasil, cupuaçu, patauá, buriti e ucuuba, entre outros, a Natura passou a monitorar e classificar espécies mais vulneráveis às mudanças do clima, como a castanha.

— De modo geral, o período de safra dessas espécies sofreu alterações, como, por exemplo, redução do período, mudança no início e fim da safra, antecipando o início ou postergando o final. Isso ocorre de forma diferente para cada espécie — explica Mauro Costa, gerente sênior de Relacionamento e Abastecimento da Sociobiodiversidade da Natura.

Para garantir o abastecimento dos insumos em risco, a fabricante de cosméticos adotou política de compra diferente, com uma porcentagem acima da demanda real, para formar um estoque de segurança.

Colheita de cacau de várzea da Cacauré, que fica em Mocajuba, na região do Baixo Rio Tocantins. — Foto: Ariane Artioli/Cacauré
Colheita de cacau de várzea da Cacauré, que fica em Mocajuba, na região do Baixo Rio Tocantins. — Foto: Ariane Artioli/Cacauré

Para fundos de investimentos e aceleradoras de negócios verdes na floresta, os riscos do clima entraram na conta para novos projetos. Segundo mapeamento do Instituto de Conservação e Desenvolvimento Sustentável do Amazonas (Idesam), há cerca de 200 startups de bioeconomia na Amazônia Legal. Dados da Associação Brasileira de Startups (Abstartups) mostram que a Região Norte reúne 5% das empresas de base tecnológica brasileiras dos vários setores.

Com um terreno de 15 hectares em que cultiva cacau nativo da Amazônia, a empreendedora Noanny Maia vem de uma família que há quatro gerações trabalha com o fruto. Em 2020, ela fundou a Cacauaré, que maneja subprodutos do cacau em parceria com seis comunidades agroextrativistas da região. O clima e a devastação da floresta, diz, são as principais preocupações dela e das famílias que cultivam o fruto em Mocajuba, na região do Baixo Rio Tocantins.

— Temos nos reunido com vários produtores para fazer um trabalho de conscientização sobre os riscos que sofremos e discutir como podemos nos prevenir e quais medidas tomar em relação à seca e ao desmatamento.

Matrizes de salvaguarda

Noanny é uma das participantes do Projeto Floresta+ Amazônia, fruto de uma parceria entre o Ministério do Meio Ambiente e o Pnud, da ONU, que tem um braço que acelera negócios da biodiversidade. A iniciativa começou no início deste ano, com orientação a empreendedores para criar matrizes de salvaguarda em suas atividades.

As equipes percorrem a Amazônia para entender o contexto de cada atividade, mapear possíveis impactos negativos e planejar ações para mitigar riscos, principalmente climáticos e ambientais:

— A questão do clima e do desmatamento, com perda de biodiversidade, não afeta só a questão econômica — diz Leonardo Rodrigues, consultor do Idesam. — Elas afetam a identidade dessas populações, processos históricos e até alternativas de se manter a floresta de pé com geração de renda.

Bruce Forsberg, gerente científico do Programa de Grande Escala da Biosfera-Atmosfera da Amazônia (LBA), tem identificado, nos últimos 20 anos, extremos maiores nas secas e cheias da região. Ele admite que a variação no clima é cíclica, mas avalia que os “ciclos estão ficando mais fortes”:

— Não é que não houve períodos secos no passado, mas não eram tão frequentes e tão fortes. O que vemos é que tem caído menos chuva no período da estiagem, e as cotas dos rios da região ficaram mais baixas.

Adaptação e manejo

Palmeira de Macaúba plantada pela Inocas, empresa que trabalha com regeneração de pastagens degradas. — Foto: Divulgação/Inocas
Palmeira de Macaúba plantada pela Inocas, empresa que trabalha com regeneração de pastagens degradas. — Foto: Divulgação/Inocas

Para culturas de ciclo longo como a macaúba, produzida pela Inocas, uma das saídas é calcular (e se planejar) para a mudança no regime de chuvas. A startup, que está na Amazônia desde 2022, criou um sistema de recuperação de pastagens degradadas com o plantio da macaúba, que tem ciclo produtivo de 40 anos.

Já são 600 hectares plantados em 11 fazendas do Pará. A palmeira é resiliente ao clima mais quente e à escassez de água, o que a faz mais adaptável a estiagens severas, explica Johannes Zimpel, fundador e CEO da Inocas. Mas, com menos água, cai a produtividade da palmeira, da qual é possível extrair o óleo vegetal que pode ser utilizado em diferentes indústrias, incluindo a cosmética e a de alimentos.

—A irregularidade no regime de chuvas dificulta também o planejamento e execução das atividades agronômicas. Isso está no nosso radar, e os agrônomos fazem leituras diárias para entender como está o regime climático e o que podemos esperar —acrescenta Zimpel, que opera com o sistema da Inocas também no Cerrado e na Mata Atlântica.

Ana Euler, diretora de Negócios da Embrapa, diz que soluções de adaptação climática podem ser adotadas para ajudar na preservação de cultivos sustentáveis sob ameaça na Amazônia, como tecnologias de manejo florestal e sistemas de produção mais integrados:

— Mas não há bala de prata. Em cada território, às vezes para os mesmos produtos, você vai precisar desenvolver estratégias que unem conhecimento científico com conhecimento tradicional.