Megaincêndios estão reformulando ecossistemas por todo o planeta

A relação entre a natureza e o fogo não é, necessariamente, ruim — incêndios remodelam e rejuvenescem ecossistemas, e diversos animais são adaptados ou até se beneficiam do fenômeno, que acaba ajudando a equilibrar a incidência de espécies tanto da fauna quanto da flora. No entanto, é a intensificação desses eventos (que começaram a ser chamados de megaincêndios) que os tem fortalecido demais para a natureza conseguir se recuperar.
A seriedade da situação levou especialistas a chamar essa época de “Piroceno”, a Era do Fogo, cujos efeitos matam animais que sobreviveriam a incêndios florestais comuns, mudam os padrões de alastramento ao ponto de extinguir espécies, transformar paisagens e refazer ecossistemas inteiros. A influência humana não tem apenas intensificado alguns incêndios, sendo que até mesmo o impedimento de eventos localizados é capaz de prejudicar a natureza. Para entender melhor a questão, explicaremos ponto a ponto.
A natureza e os incêndios
Adaptações da fauna e flora aos incêndios vêm de milhares de anos no passado. Algumas árvores têm raízes que conseguem se recuperar mesmo após o tronco queimar, e o cheiro de fumaça acorda alguns animais do torpor, um tipo de hibernação leve. O problema é que mudanças climáticas e outros fatores, como a expansão de gramíneas altamente inflamáveis, têm mudado o cenário de forma que o tamanho dos incêndios e sua severidade tem crescido exponencialmente, impedindo esse tipo de recuperação.

Um exemplo é a chegada do fogo em ecossistemas onde não há familiaridade com o fenômeno. Na Austrália, em 2019 e 2020, megaincêndios chegaram às florestas úmidas, onde há plantas que não se regeneram após as chamas. Animais do local também são “ingênuos” em relação ao fogo, ou seja, não passaram pela seleção natural para identificar o perigo relacionado e as dicas sensoriais da chegada de incêndios.
As lagartixas-do-mato, que vivem em diversos habitats do Mediterrâneo e Norte da África, enfrentam incêndios em apenas alguns locais. Em um estudo, pesquisadores notaram que espécimes de regiões onde há fogo com frequência reagem rapidamente ao cheiro de fumaça, correndo e balançando a língua, enquanto os que não convivem com a ameaça não esboçaram reação frente aos sinais de chamas.
Em incêndios que consomem mais combustível, é produzida mais fumaça, que pode chegar a animais cada vez mais distantes do fogo, impactando todos os que respiram pelo ar, que acabam inalando fumaça tóxica.

O impacto não é só respiratório. Orangotangos expostos a poluentes das chamas na Indonésia, em 2015, passaram a vocalizar com menos frequência e com vozes mais ásperas, além de se mover menos e comer mais, mas com o corpo ainda queimando gordura corporal acumulada, sinal de estresse ou de inflamação.
Limites na adaptação ao fogo
Alguns animais se beneficiam das chamas. Herbívoros que sobrevivem em regiões incendiadas precisam buscar comida e água em locais secos, quentes e com recursos escassos, ficando muito expostos aos predadores, que acabam prosperando. Incêndios florestais considerados normais deixam “oásis” de gramíneas e árvores, onde alguns animais mais sensíveis sobrevivem.
Caribus, por exemplo, comem líquen altamente inflamável, além de cascas finas de abetos, que tem sobrevivido cada vez menos a grandes incêndios. Já o pica-pau-de-dorso-preto é um animal muito bem adaptado a incêndios, construindo ninhos em árvores carbonizadas e se alimentando de larvas de besouros que habitam esses locais.

A ave, no entanto, prefere árvores queimadas próximas às ainda vivas e com folhas, que protegem os filhotes pequenos de predadores. Nos incêndios da Califórnia, em 2013, buscas pela espécie mostraram apenas seis pássaros da espécie em mais de 500 locais, provando que o habitat queimado já não era mais o ideal para eles.
Árvores também têm sofrido, já que as fontes de sementes estão escasseando. O solo queimado e sem vegetação não consegue absorver a água da chuva com eficiência, e enchentes pós-incêndio podem levar cinzas e sedimentos até rios e lagos, poluindo a água, matando peixes e reformulando o ambiente fluvial.
No Canadá, incêndios repetidos removeram florestas de pinus de alguns locais e as substituíram por gramíneas e choupos, que têm sementes leves fáceis de serem carregadas pelo vento. Isso reformulou completamente o ambiente florestal.

Como os incêndios regeneram alguns ambientes, suprimir o evento natural às vezes causa problemas. Florestas não são melhores, por si só, do que outros ecossistemas — a vegetação campestre antiga, por exemplo, é um local de grande biodiversidade, e acaba ameaçada quando a supressão de incêndios faz com que se tornem florestas.
Alguns incêndios restauram o equilíbrio natural, mas a biodiversidade de campos ou prados novos pode demorar a se formar. Na região amazônica, algumas florestas têm se tornado savanas, trazendo espécies diferentes e diminuindo a diversidade de formigas e borboletas, por exemplo. Espécies especializadas em florestas ficam menos comuns e dão lugar a “generalistas”, animais que sobrevivem em qualquer ambiente, deixando a fauna homogênea demais.
Estima-se que a incidência maior de incêndios pode levar mais de 1.000 espécies animais e vegetais mais próximas da extinção. Muitas destas criaturas já sofrem com o desmatamento e expansão de terras para cultivo, e a chegada de fogo mais intenso acaba as deixando com coisas demais para lidar — não à toa, cientistas avisam que a próxima extinção em massa pode estar mais acelerada do que se acreditava. Até 25% da biodiversidade pode deixar de existir ainda em nosso século.