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Kunming-Montreal: novo marco da biodiversidade traça perspectivas para 2030

Kunming-Montreal: novo marco da biodiversidade traça perspectivas para 2030

Especialista da The Nature Conservancy Brasil faz um balanço sobre os resultados da COP 15 da biodiversidade e explica quais são os desafios e metas do novo acordo

Na esfera ambiental global, 2022 chega ao final marcado por duas grandes Conferências das Partes (COP) da ONU: a COP 27 do clima e COP 15 da biodiversidade. No geral, os resultados de ambas não deixam dúvidas de que as crises do clima e da biodiversidade – e as ações para enfrentá-las – estão profundamente ligadas. A perda da natureza e as mudanças climáticas amplificam-se mutuamente.

Os objetivos do Acordo de Paris de limitar o aquecimento global de 1,5°C a 2°C não podem ser alcançados sem as soluções baseadas na natureza e a conservação da biodiversidade. Por outro lado, não há meios de preservar a biodiversidade sem um clima estável e ações positivas para reverter a perda da natureza.

Na conclusão da COP 15 – muitas vezes turbulenta, em que países em desenvolvimento, liderados pelo Brasil, chegaram a se retirar das discussões –, as partes aprovaram o Marco Global da Biodiversidade (GBF) de Kunming-Montreal, um pacote de medidas que orientará a política de biodiversidade, com quatro objetivos de longo prazo para 2050 e 23 metas para 2030, orientadas para a ação, que precisam ser implementadas imediatamente.

De acordo com o Marco de Kunming-Montreal, os objetivos globais para 2050 são:

  1. Manutenção, melhoria ou restauração da integridade, conectividade e resiliência de todos os ecossistemas, incluindo a interrupção da extinção induzida pelo homem e a manutenção da diversidade genética;
  2. Uso sustentável da biodiversidade;
  3. Compartilhamento justo e equitativo de benefícios associados ao uso de recursos da natureza e proteção do conhecimento indígena;
  4. Garantia de que recursos financeiros, técnicos e conhecimento científico destinados à implementação de ações cheguem aonde são necessários.

Entre as 23 metas globais até 2030 estão: proteção de 30% do planeta para a biodiversidade e as funções dos ecossistemas (conhecido como plano 30 × 30); perda quase nula de áreas de alta importância para a biodiversidade, incluindo ecossistemas de alta integridade ecológica; restauração de 30% dos ecossistemas terrestres e marinhos degradados do planeta; interrupção da extinção de espécies ameaçadas induzida pelo homem; uso, colheita e comércio de espécies silvestres sustentáveis, seguros e legais.

O Marco endereça ainda conectividade e serviços ambientais, responsabilidade de empresas, transferência de recursos, bem como riscos associados a mudanças climáticas, espécies invasoras, poluição, desperdício global de alimentos e consumo excessivo, biotecnologia, subsídios, entre outros tópicos.

No conjunto, o Marco é compreensivo e contempla os principais aspectos da biodiversidade – espécies, ecossistemas, diversidade genética, contribuições da natureza para as pessoas. Abrange também os cinco fatores diretos de mudança na natureza com os maiores impactos sobre a biodiversidade: mudanças no uso da terra e do mar, exploração direta de organismos, mudanças climáticas, poluição e espécies exóticas invasoras. Esses aspectos foram apontados em um relatório de 2019 da Plataforma Intergovernamental de Políticas Científicas sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (IPBES), um grupo científico e político independente, que estimou que um milhão de espécies animais e vegetais estão ameaçadas de extinção.

No discurso, a biodiversidade nunca teve tanto destaque na agenda política e empresarial, mas o que realmente importa é a implementação do Marco. Conectar as ações propostas aos resultados da biodiversidade e acompanhar o progresso continuam sendo um desafio. Nenhuma das Metas de Aichi, adotadas na COP 10 em Nagoya, Japão, em 2010, foi totalmente cumprida, de acordo com um relatório da Convenção da Diversidade Biológica de 2020. E não há nenhum mecanismo para responsabilizar os governos pelo não cumprimento das metas.

A falta de acordo sobre uma ação ambiciosa para reduzir as emissões de gases de efeito estufa na conferência sobre mudanças climáticas (COP27) em novembro, no Egito, faz com que o Marco de Kunming-Montreal comece com um handicap. O provável não alcance da meta climática do Acordo de Paris impactará diretamente a conservação da biodiversidade. Além disso, o Marco apresenta algumas ambições vagas ou diluídas, como a falta de uma meta numérica para reduzir a pegada insustentável da produção e do consumo e de uma linguagem que permita a supervisão de novas práticas tecnológicas e de biossegurança – bloqueada por países que dependem fortemente do setor agrícola industrial, incluindo o Brasil.

No entanto, houve progressos importantes como o espaço dado no documento final aos povos indígenas, comunidades locais, conhecimentos tradicionais e igualdade de gênero. Em alguns casos, as metas tornaram-se mais ambiciosas que as das Metas de Aichi, como o Plano 30 × 30, que aumenta a proteção das áreas terrestres e de águas de 17% para 30%. O Marco de Kunming-Montreal forma um pacote que inclui decisões sobre uma estrutura de monitoramento, sequência digital de informações sobre recursos genéticos (DSI, da sigla em inglês), mobilização de recursos, mecanismos de planejamento, comunicação, monitoramento, relatórios e revisão, capacitação e cooperação técnica e científica. Ou seja, as condições habilitantes para o alcance das metas estão dadas.

Num momento de crise econômica e social mundial, em que divisões geopolíticas tornaram a solução de problemas globais mais difíceis, sinergias entre a implementação de políticas de mudanças climáticas, de biodiversidade e de outros acordos importantes são essenciais para maximizar acesso a recursos cada vez mais escassos, permitir avanços integrados e responder ao cenário de risco atual.

Cabe também aos países cumprirem a sua parte. No Brasil, a expectativa é de que, tal como aconteceu para as Metas de Aichi para 2010-2020, sejam estabelecidos, de forma participativa, metas e planos nacionais ou estaduais para a biodiversidade. Espera-se também que a lógica de superinvestimento em práticas que levam à degradação e destruição da vegetação nativa e de subinvestimento na conservação e restauração seja invertida por meio do reconhecimento do valor da biodiversidade e dos serviços ecossistêmicos.

* Edenise Garcia é diretora de ciências na The Nature Conservancy (TNC) Brasil.