Anchor Deezer Spotify

Juventudes de comunidades tradicionais dialogam sobre mudanças climáticas e racismo ambiental

Juventudes de comunidades tradicionais dialogam sobre mudanças climáticas e racismo ambiental

As mudanças climáticas afetam a todos; contudo, os desastres ambientais amplificam as situações de vulnerabilidade social de crianças e juventudes e, em muitas circunstâncias, produzem rupturas ou flexibilizam seus vínculos protetivos, acentuando quadros de violação de seus direitos

A reportagem é de Letícia Aparecida Rocha, SDP, e Henrique Cavalheiro., enviada pelos autores ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

Letícia Aparecida Rocha é Irmã da Divina Providência, educadora social e secretária executiva do regional Conselho Pastoral dos Pescadores – CPP/MG. É formada em Pedagogia pela PUC Minas, mestra em Desenvolvimento Social pela Unimontes e doutoranda em antropologia social PPGAN-UFMG.

Henrique Cavalheiro é comunicador organizacional e mestrando em Saúde Coletiva pela UnB, assessor de comunicação do Conselho Pastoral dos Pescadores – CPP Nacional.

Eis a reportagem.

“Eu tentei entender a costura da vida…” – Sérgio Pererê[1]

“Na Bahia  iá, iá,  iá, todo mundo na Bahia”[2], mais especificamente em Salvador, juventudes com múltiplas identidades étnico-ambientais: pesqueira, indígena, quilombola, vazanteira e veredeira, vindas dos  rincões de cinco estados brasileiros: Minas GeraisBahiaSergipeCeará e Piauí,  participaram de um intercâmbio por três dias. Durante o encontro, dialogaram sobre as dificuldades que as mudanças climáticas e o racismo ambiental causam em suas vidas e em suas comunidades tradicionais.

Na sexta-feira, 27 de setembro, o encontro começou fomentando este diálogo entre a juventude participante, tendo como facilitadora a jovem de 26 anos, Thuane Nascimento[3], conhecida como Thux, militante da Perifa Connection e da Coalizão Negra por Direitos no Rio de Janeiro, que colaborou com o aprofundamento do tema sobre as mudanças climáticas e o racismo ambiental, que colocam em risco a Casa Comum, e comprometem a preservação dos territórios,  elemento necessário para que, a vida desta geração e das gerações futuras tenha dignidade. E também, inviabiliza as condições necessárias para que o protagonismo da juventude, “na costura da vida”, aconteça e floresça, segundo seu modo de vida tradicional.

Thuane Nascimento, conhecida como Thux, militante da Perifa Connection e da Coalizão Negra por Direitos no Rio de Janeiro (Foto: Ingrid Campos | CPP)

O debate destacou o impacto direto desses fatores na vida das comunidades tradicionais. Neste sentido, foram apresentados conceitos essenciais para auxiliar na compreensão do cenário ambiental e climático atual, conectando a degradação dos territórios à luta por justiça socioambiental.

Thux destacou a importância de repensar o papel dos territórios periféricos e tradicionais na luta por justiça climática. Segundo Thuane, “todo lugar que é marginalizado é periferia. No Brasil, o centro acumula tudo, política pública, privilégio, as melhores escolas, espaços de cultura. Os centros recebem tudo, e as periferias não recebem nada”. Isto causa uma disparidade de oportunidades e acentua as ameaças aos mais pobres e vulneráveis.

A questão do racismo ambiental, termo, cunhado na década de 1980 por Benjamin Franklin Chavis Jr., surgiu durante os protestos contra o depósito de resíduos tóxicos em áreas predominantemente negras no condado de Warren, nos Estados Unidos. Essa discriminação racial, segundo Thux, que submete comunidades vulneráveis à degradação ambiental, no Brasil se amplia para incluir outros grupos, como indígenasquilombolaspescadores e ribeirinhos. Assim, as mudanças climáticas impactam de maneira desigual as regiões com maior população negra e pobre.

As soluções para o Brasil estão nos territórios

A facilitadora ressaltou que a narrativa comum sobre as periferias precisa ser desmistificada, pois são nesses territórios que resistências e soluções emergem. “Viver no poder da periferia para a periferia poder viver e ter bem-viver. Pensar nas confluências, os problemas do Brasil passam pelo território. Enquanto o Brasil não ouvir a gente, os governantes só perdem”, afirmou ela, defendendo que as comunidades periféricas precisam ser ouvidas.

Foto: Henrique Cavalheiro | CPP

Além disso, foi discutido o conceito de justiça climática e a disparidade entre os responsáveis pelas mudanças climáticas e as comunidades que sofrem as consequências, colocando as populações mais pobres em “zonas de sacrifício”, onde os danos ambientais se acumulam de forma desproporcional. A justiça ambiental visa assegurar que nenhuma comunidade suporte sozinha o ônus das políticas econômicas predatórias.

Quem sofre? Quem paga? Quem ganha?

A jovem também chamou a atenção para a intersecção entre as questões ambientais e sociais. Ela criticou a visão de que os impactos das mudanças climáticas são provocados por todas as pessoas igualmente enquanto sociedade. “Agora vamos usar o termo justiça climática. Sabe quem contribui para o agravamento das mudanças climáticas? Não somos nós, nosso tipo de ser humano, mas são os ricos. Este é o nível de diferença entre nós e os grandes poluidores”, frisou.

Ao abordar a realidade das favelas e comunidades tradicionais, Thuane destacou a falta de acesso a direitos básicos e a degradação do território. “Eu já nasci em um território degradado, as favelas já nascem degradadas, pois nunca tivemos acesso a moradia, e tivemos que ir para lugares que não eram bons de morar, porque o poder público nunca garantiu isso pra gente”, disse. Ela ainda comparou: “Em toda a minha favela não há uma árvore, só no cemitério que fica ao lado. Os mortos têm sombra e acesso à natureza, e as pessoas vivas não têm na periferia”. Isto é um exemplo de racismo ambiental, pois segundo a militante, a maioria das pessoas destas comunidades são pretas ou pardas, e há desproporcionalidade de acesso à natureza e aos recursos básicos para uma existência digna.

Para Thuane, o território é central nas soluções para o Brasil. “O território é a coisa mais importante. As soluções para o Brasil estão nos territórios, inclusive para discutir as mudanças climáticas”, concluiu, apontando para a necessidade de ouvir e valorizar as comunidades tradicionais e periféricas na formulação de políticas públicas.

Juventude consciente e lutadora

Os participantes do encontro tiveram a oportunidade de compartilhar suas percepções, trazendo para o debate as realidades de seus territórios em relação ao racismo ambiental e aos impactos das mudanças climáticas. Eles destacaram a interconexão entre território e pessoas, ressaltando que não há como pensar em transformações sem levar esses elementos em consideração.

Foto: Ingrid Campos | CPP

Jovens do Ceará, por exemplo, relataram como a implantação de energias renováveis transformou seus territórios em zonas de sacrifício, com as eólicas ameaçando suas comunidades. Esses empreendimentos, que chegam com promessas de desenvolvimento, acabam deixando apenas destruição, tanto na saúde quanto na economia local. Outro problema levantado foi a mineração, que polui açudes e rios, colocando em risco o modo de vida das comunidades pesqueiras.

Já no sábado, 28 de setembro, para potencializar as denúncias da juventude sobre os impactos das mudanças climáticas e o racismo ambiental em seus territórios, o segundo dia, teve como foco a comunicação, em forma de oficinas. O diálogo foi em torno das oportunidades e dos riscos das redes sociais, construindo compreensões de como os meios de comunicação podem ser ferramentas poderosas tanto para amplificar denúncias sobre as injustiças socioambientais quanto para apresentar as belezas e a riqueza cultural dos seus modos de vida e tradições.

Com a facilitação de Jonaire Mendonça, da assessoria de comunicação do Conselho Pastoral dos Pescadores e Pescadoras, regional Bahia e Sergipe, e integrante da Criôla Criô, ficou evidente a importância de incluir os jovens das comunidades tradicionais no diálogo sobre comunicação e redes sociais. Para ela, o evento funciona mais como um intercâmbio do que apenas um encontro, pois a juventude desses territórios tem muito a ensinar. “Não dá pra falar sobre eles sem trazê-los pro diálogo. Acho que é importante essa inserção, essa troca, esse intercâmbio”, afirmou Jonaire, destacando que cada território traz saberes e modos de fazer únicos, o que torna a troca ainda mais rica.

Jonaire Mendonça, da assessoria de comunicação do Conselho Pastoral dos Pescadores e Pescadoras, regional Bahia e Sergipe, e integrante da Criôla Criô (Foto: Ingrid Campos | CPP)

E no dia 29 setembro, as juventudes continuaram o aprofundamento sobre as mudanças climáticas e o racismo ambiental, no diálogo com alguns dos ricos espaços culturais de Salvador como o Museu da Cultura Afro-Brasileira – MUNCAB, a Casa do Carnaval da Bahia e o Pelourinho, rememorando, fortalecendo e interconectando as raízes culturais e históricas da resistência negra de ontem e de hoje.

Apoio a organização das juventudes tradicionais em suas múltiplas identidades

As mudanças climáticas afetam a todos; contudo, os desastres ambientais amplificam as situações de vulnerabilidade social de crianças e juventudes e, em muitas circunstâncias, produzem rupturas ou flexibilizam seus vínculos protetivos, acentuando quadros de violação de seus direitos. Além disso, causam-lhes continuamente ansiedades ambientais ou climáticas, que interferem diretamente no protagonismo das juventudes em suas respectivas comunidades tradicionais. A ‘ansiedade climática’ ou ‘ecoansiedade’ é um termo criado pela American Psychology Association (APA) em 2017 para retratar o medo acentuado diante das catástrofes ambientais no atual contexto de mudanças climáticas, gerando preocupação quanto ao futuro de si mesmos e das gerações futuras[4].

Jovens visitando o Museu da Cultura Afro-Brasileira – MUNCAB (Foto: Henrique Cavalheiro | CPP)

CPP, no serviço pastoral junto às comunidades pesqueiras, tem buscado apoiar o diálogo entre os jovens, de modo a colaborar com eles para que organizem, comuniquem e denunciem suas percepções sobre os efeitos das mudanças climáticas e do racismo ambiental em suas comunidades, que interferem diretamente em seus modos tradicionais de vida, demandando continuamente a resistência para garantir o direito de existir como Povos e Comunidades Tradicionais – PCTs.

Nessa perspectiva, os regionais do CPP e apoiadores[5] do intercâmbio compreendem e avaliam a importância dessa atividade como troca de experiências e momento formativo para as juventudes pesqueiras tradicionais, em suas múltiplas identidades, enquanto comunicadoras de suas percepções sobre as mudanças climáticas e as situações de racismo ambiental a que seus coletivos são submetidos. Além disso, é um instrumento de fortalecimento do protagonismo dos jovens na superação das agruras causadas por esses problemas socioambientais em suas vidas e comunidades, em processo de busca pela regularização de seus territórios pesqueiros tradicionais.

Foto: Ingrid Campos | CPP

No caso das juventudes das comunidades pesqueiras tradicionais, no contexto das mudanças climáticas que impactam todos os seus territórios — espaço de vida —, elas enfrentam continuamente a disputa de seus espaços tradicionais por empreendimentos e pela própria concentração latifundiária, verazmente arraigada na história de nosso país. É sobre esse panorama que o Movimento de Pescadores e Pescadoras Artesanais (MPP), onde a juventude pesqueira está inserida, tem buscado, pedagogicamente e judicialmente, consolidar a demarcação dos territórios pesqueiros tradicionais por meio da campanha de regularização fundiária dos mesmos. Atualmente, está em andamento no Congresso Nacional o Projeto de Lei nº 131 de 2020, que visa a construção jurídica da lei de regularização dos territórios pesqueiros tradicionais.

Seguimos, no serviço pastoral aos homens e mulheres das águas, apoiando as juventudes em seus processos, como  agentes de libertação das agruras causadas pela lógica capitalista, que coloca o lucro acima da vida e as dádivas da criação sob ameaça de extinção.

Notas

[1] Canção Costura da Vida. Compositor: Sérgio Pererê

[2] Música na Bahia. Compositores: Ivete Maria Dias De Sangalo / Neilton Cerqueira Santos.

[3] Advogada e diretora executiva da Perifa Connection, plataforma que disputa narrativas e confluência nas periferias brasileiras, integrante do Observatório do Clima e da Coalizão Negra por Direitos do Rio de Janeiro.

[4] Disponível Aqui.

[5] O intercâmbio das juventudes tradicionais teve como parceiros os regionais do CPP BA/SE; MG/ES; CE/SE; equipe de comunicação do CPP nacional; o Criôla Criô – Agência de Comunicação e Produção. E o apoio das entidades: Fundo Casa Socioambiental, CESE – Coordenadoria Ecumênica de Serviço; ActionAid; kindermissionswerk e IDP no Brasil – Província das Irmãs da Divina Providência no Brasil.