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História e cultura em rochas, uma viagem pela geologia do litoral norte paulista

História e cultura em rochas, uma viagem pela geologia do litoral norte paulista

Grupo da USP elenca mais de 50 formações geológicas de interesse turístico e divulga material em redes sociais

Entre os azuis do céu e do mar, um horizonte verde denso da mata costeira sobe por quase todo o solo ascendente. Grandes pedras desgastadas pelo vento e pela água surgem ao longo da praia e, junto com elas, o som de sinos. A Pedra do Sino ou Garapocaia (“Pedra que canta”, no tupi) é encontrada na Ilhabela e consiste na formação de rochas alcalinas em erosão. Suas ranhuras e a disposição de seus minerais permitem a emissão de sons metálicos semelhantes aos de sinos.

Esse é um dos vários atrativos geológicos do litoral norte de São Paulo, divulgados pelo Núcleo de Apoio à Pesquisa em Patrimônio Geológico e Geoturismo (GeoHereditas), sediado no Instituto de Geociências (IGc) da USP.  A postagem de fotos dos diversos conjuntos rochosos no facebook começou em maio deste ano, mas pesquisas responsáveis por esse acervo ocorrem há mais de dez anos.

As publicações se inserem no conceito de geoturismo: atividade turística que envolve conhecer a geologia de uma região e a relação com sua história e cultura. Os agrupamentos minerais fazem parte de um mapa e roteiro elaborados pelo GeoHereditas e que envolve outros elementos como praias, comunidades, locais religiosos, parques ecológicos e construções históricas.

A equipe é composta de professores, pesquisadores de pós-graduação, estudantes de graduação e profissionais especializados em geoprocessamento e geotecnologias. A atividade permite realizar a coleta de amostras, mas não só isso: é possível selecionar e produzir material de divulgação científica e de geoturismo, explica Maria da Glória Motta Garcia, professora do IGc e coordenadora do projeto.

Maria da Glória Motta Garcia é professora do IGc/USP e coordenadora do GeoHereditas – Foto: arquivo pessoal

Ela detalha que a montagem do roteiro passa, primeiro, por um estudo de publicações anteriores, em que são selecionados pontos de interesse. “Quando fazemos esses inventários, nós realizamos uma avaliação dos potenciais e dos talentos de cada local. Vemos alguns locais que são mais propícios para uso científico. Às vezes, eles não têm muita beleza cênica ou são mais difíceis de se chegar, então, ficam só para pesquisa. Outros são bonitos e passam por locais de fácil acesso, assim, também podem ter um apelo turístico. Outros têm muitos elementos geológicos importantes, logo, eles têm um apelo didático, educativo em diversos níveis: tanto universitário, como de ensino básico.”

Geologia, cultura e história

Acesso à Gruta que Chora (esquerda) e formação geológica (direita) – Foto: GeoHereditas

Uma das postagens mostra a Gruta que Chora. Sua história envolve a criação de mitos populares, como a existência de uma serpente gigante que afunda embarcações no local. Outra lenda conta que a água da gruta foi originada pelas lágrimas de uma jovem, cujo amante se transformou em um réptil.

Costão rochoso na região da Gruta que Chora, atrativo geológico local – Foto: GeoHereditas

A formação do atrativo ocorreu pelo desgaste do costão rochoso de granito, de 580 milhões de anos atrás.Também conhecido como diques, essa formação mineral está situada na praia de Sununga, no município de Ubatuba.

Arquipélago do Alcatrazes na unidade de conservação Refúgio do Alcatrazes – Foto: GeoHereditas

Outra publicação envolve o Arquipélago de Alcatrazes, localizado a 36 km do Porto de São Sebastião, cujo acesso é exclusivamente marítimo. A viagem, com tempo estimado de uma hora, leva à Unidade de Conservação Refúgio de Alcatrazes, gerenciada pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), um órgão federal descentralizado do Ministério do Meio Ambiente.

De outro ângulo, o Arquipélago do Alcatrazes e seu conjunto rochoso granito Alcatrazes – Foto: GeoHereditas

Seu conjunto rochoso é denominado granito Alcatrazes, uma rocha magmática de 570 milhões de anos. Ela é conhecida por apresentar megacristais de feldspato, conjunto de minerais que alcançam até 10 cm de tamanho. O arquipélago também apresenta interesse histórico por ser descrito em relatos da expedição colonizadora de Martin Afonso de Souza e de Hans Staden, no início do século 16.

Produção e transmissão do acervo geoturístico

Segundo Maria da Glória, a ideia surgiu em 2011 de um desejo de aprofundar um manual de trilhas divulgado pelo governo do estado de São Paulo. De acordo com ela, existia descrição da vegetação e dos animais, mas não era frequente encontrar aspectos geológicos dos locais.

A cientista, que nasceu na cidade de Caraguatatuba (litoral norte paulista), comenta também que a inspiração para a seleção desta região foi o projeto Caminhos Geológicos, do Departamento de Recursos Minerais do Estado do Rio de Janeiro. Esse trabalho envolveu a produção de painéis turísticos para paisagens cariocas ao contar sua história geológica. “Percebi que nós também tínhamos uma mesma história do litoral norte porque eu o conhecia”, afirma.

As iniciativas começaram com projetos de iniciação científica para divulgação dos conjuntos rochosos de cada trajetória. Progressivamente, eles evoluíram para projetos de mestrado e doutorado envolvendo municípios. “Uma aluna de mestrado, por exemplo, começou a fazer um inventário do patrimônio geológico de Ilhabela, focando os atrativos que estavam em trilhas e os que não estavam também. Assim, foram Ilhabela, Ubatuba, Caraguatatuba, São Sebastião…”, conta.

Rocha magmática granito Alcatrazes e seus cristais de feldspato – Foto: GeoHereditas

Uma das atividades é a coleta de material das pedras. “Nós vamos para o campo com um martelo e uma marreta, e tiramos fragmentos da rocha. Dependendo do tipo de análise que a gente vai fazer, o material pode ser maior ou menor. Se for uma lâmina delgada para olhar no microscópio, pode ser pequeno. Mas se for, por exemplo, para fazer análise geoquímica ou geocronológica, e a depender do tipo de rocha, o tamanho da amostra pode ser grande”, explica a geóloga.

Uso da bússola geológica para descobrir orientação de camadas da rocha no Arquipélago de Alcatrazes - Foto: GeoHereditasUso da bússola geológica para descobrir orientação de camadas da rocha no Arquipélago de Alcatrazes – Foto: GeoHereditas

Para entender o processo de formação desses recursos naturais, segundo ela, usa-se uma bússola específica que determina a disposição das camadas minerais depositadas. “Elas têm uma orientação em relação ao norte geográfico, ao norte magnético do planeta e em relação à horizontal. Podem fazer um ângulo de 45 graus, um ângulo de 30 graus ou podem estar paralelas, verticais. Nós pegamos essas medidas porque conseguimos, com base em outras coisas, reconstituir a história geológica.”

Trabalho em campo em Itaguaré, Bertioga, com uso de drone pela equipe - Foto: GeoHereditasTrabalho em campo em Itaguaré, Bertioga, com uso de drone pela equipe – Foto: GeoHereditas

Outras tarefas englobam a fotografia dos locais em diferentes ângulos, incluindo o registro com drones; produção de material digital para mapas e modelos 3D; cursos para monitores ambientais e setores turísticos; instalação de painéis informativos; e eventos educativos para professores e a população em geral. 

A professora menciona o planejamento de uma ação educativa no núcleo Caraguatatuba do Parque Estadual da Serra do Mar, no segundo semestre, cuja ideia é  “andar com a população em alguns desses atrativos conversando sobre o significado geológico, mas também sobre as ameaças às quais eles estão sujeitos; as ameaças em termos de mudanças climáticas, ameaças como erosão, inundações e deslizamentos que sempre têm na Serra do Mar.”

Para além do roteiro pelo litoral norte de São Paulo, o grupo já reuniu o inventário do litoral sul e está em fase de planejamento do mapa. Em paralelo, está em andamento o processo de pesquisa sobre a Baixada Santista, que deve percorrer toda a costa. Um dos trabalhos anteriores envolveu a escrita do livro Patrimônio Geológico Paulista — uma viagem no tempo geológico em 50 geossítios, no final de 2021. Fora do Estado, o GeoHereditas também mantém a produção de um inventário do patrimônio do Ceará, especificamente do Domínio Ceará Central, em parceria com a Universidade Federal do Ceará (UFC).

“Quando a pessoa entende como as rochas são formadas, como um rio é formado, como uma montanha é formada, como uma paisagem é formada, ela começa também a fazer escolhas. Ela sabe que algumas intervenções no meio físico podem ser prejudiciais. Começa a perceber que não é legal, simplesmente, destruir um local só porque ele é uma pedra. A pedra conta histórias e a destruição daquilo pode fazer com que todo um ecossistema também seja destruído e, por conseguinte, as nossas próximas gerações não verão mais o que vemos hoje”, salienta a professora.

O GeoHereditas

O GeoHereditas está no Instituto de Geociências da USP. O termo “Hereditas” remonta a herança, patrimônio, e está relacionado à preservação do legado geológico e sua relação com a comunidade. Suas atividades envolvem a promoção de ensino, pesquisa e suporte na área de geoconservação ao reunir pesquisadores e estudantes das áreas de geociências, biociências, ciências sociais e turismo. 

O grupo também mantém comunicação com órgãos de proteção ao meio ambiente e incentiva a colaboração multidisciplinar em nível nacional e internacional.  A área de geoconservação envolve a manutenção de locais e paisagens relevantes para o entendimento da formação do planeta, de seus usos pela sociedade e das perspectivas de transformações futuras.

O vídeo apresenta conceitos geocientíficos e o papel do GeoHereditas na preservação do patrimônio geológico e na produção de conhecimento. Assista clicando no player

Para saber mais sobre o GeoHereditas e o roteiro geoturístico, acesse o site e o facebook.