Estudo em animais mostra que probiótico pode prevenir diabetes tipo 1

Pela primeira vez, cientistas da USP demonstraram os mecanismos associados a essa proteção; ensaios com pacientes devem começar em breve
Pesquisadores da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP (FMRP) mostraram que a administração de um probiótico recombinante melhora a hiperglicemia e reduz a incidência de diabetes em camundongos. Além disso, os cientistas demonstraram, pela primeira vez, os mecanismos associados a esse processo. O estudo faz parte do doutorado de Jefferson Elias Oliveira,sob orientação de Daniela Carlos Sartori, da FMRP.
O probiótico utilizado foi o Lactococcus lactis (L. lactis), uma bactéria muito usada na indústria para a produção de leite e queijo. Além disso, ela também é conhecida por regular o equilíbrio da microbiota intestinal em camundongos.
A ele foi induzida a expressão de uma proteína presente em células eucariontes e procariontes, a HSP65 (proteina do choque térmico 65), conhecida por sua atividade anti-inflamatória em doenças autoimunes e em inflamações crônicas em modelos experimentais murinos. “Esse probiótico conseguiu se manter viável ao atravessar o estômago e liberar HSP65 no intestino”, afirma Oliveira. “Mas por que no intestino? Porque já existem evidências de que disfunções no intestino, como desequilíbrio da microbiota, pode contribuir com o desenvolvimento de diabetes tipo 1, mostrando que o eixo intestino-pâncreas pode ser um alvo para novas terapias para diabetes.”

Daniela Carlos Sartori explicou ao Jornal da USP que a diabetes tipo 1 é uma doença que afeta cerca de 9,50 milhões de pessoas, começa a se manifestar na infância, mas já há relatos de casos da manifestação doença em adultos. “Nosso grupo já mostrou que a microbiota pode ser um fator desencadeante para o desenvolvimento da doença. O que isso significa? Que ela pode se manifestar por questões genéticas, mas existe uma forte interferência de fatores ambientais [como infecções virais, toxinas, alimentação].”
Ineditismo
O primeiro passo dos cientistas foi validar a expressão do probiótico in vitro. Após observarem que a HSP65 recombinante induz à diferenciação de células dendríticas convencionais (cDC1 e cDC2), o grupo retirou células da medula óssea de camundongos e as diferenciou em células dendríticas, que foram estimuladas com HSP65. As células dendríticas são um tipo de leucócito produzido na medula óssea e são responsáveis pela identificação de infecções e desenvolvimento da resposta imune.
Os resultados mostraram que as células dendríticas estimuladas com HSP65 recombinante produziram mais interleucina 10 (IL-10, uma citocina com ação imunossupressora e imunorreguladora) e induziram a diferenciação de células T reguladoras, conhecidas como Tregs. As Tregs modulam o sistema imunológico, mantêm a tolerância a autoantígenos e previnem doenças autoimunes.
O terceiro passo foi ver se esses resultados se repetiam em modelo animal. Para isso, os cientistas utilizaram um protocolo profilático-terapêutico, administrando o probiótico recombinante (L.lactis expressando HSP65) em camundongos com diabetes tipo 1. Nos experimentos, dois modelos de diabetes tipo 1 foram utilizados: camundongos diabéticos não obesos, que desenvolvem diabetes espontaneamente; e camundongos com diabetes 1 induzido quimicamente. Em ambos os modelos, o probiótico recombinante reduziu a hiperglicemia e a incidência da doença, além de preservar a quantidade de insulina nas ilhotas beta-pancreáticas, deixando os níveis de glicemia mais regulados.
Após essa etapa, os cientistas analisaram o intestino desses animais. “A produção de muco foi melhorada, isso é um fator importante”, explica Oliveira. “Além disso, as células dendríticas cDC1 estavam aumentadas nos linfonodos cecais do intestino”. Linfonodos cecais estão localizados perto do ceco [porção inicial do intestino grosso]. Neles ocorre indução de células importantes para a defesa, como os linfócitos.
A novidade do trabalho de Oliveira foi mostrar que a administração do probiótico faz com que as células dendríticas desses linfonodos expressem uma molécula chamada Toll-like receptor 2 (TLR2). Em experimentos com camundongos deficientes de TLR2, o probiótico não protegeu contra a doença e induziu menos T regs quando comparado ao grupo de camundongos que expressam o TLR2. “Ela é chave na proteção em nosso modelo”, explica o pesquisador.
O TLR2 é uma proteína de membrana expressa na superfície de certas células. Esse receptor reconhece substâncias estranhas e transmite sinais apropriados às células do sistema imunológico.
Mais pesquisa
Após a finalização deste trabalho, Oliveira realizou um outro estudo com dados de pacientes com diabetes. “A nossa pergunta foi: será que os pacientes têm essa expressão de TLR2 reduzida, além de outros genes associados?
No estudo in silico “avaliamos as células dendríticas derivadas de monócitos e a expressão de alguns genes que eram importantes para nós”, relata o pesquisador. “E vimos que os pacientes com diabetes têm redução de vários genes associados à tolerância nas células dendríticas, que provavelmente têm menor capacidade de induzir as Tregs.”
“Além disso, observamos que os pacientes com diabetes tipo 1 também têm redução na expressão TLR2 nas células dendríticas”, continua Oliveira. “A conclusão é que o paciente diabético possui genes imunorreguladores reduzidos nessas células, inclusive o TLR2. Isso vai de encontro aos nossos dados experimentais, que mostram que probiótico aumenta a expressão de TLR2 e, consequentemente, ajuda a proteger contra a doença. Esse é o panorama.”
Daniela contou ao Jornal da USP que, em breve, vão iniciar os ensaios em pacientes recém-diagnosticados do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (HCFMRP) da USP.
“Vamos estimular as células dendríticas dos sangue dos pacientes com HSP65, com foco principal em pacientes em fase inicial da doença, para entender se isso poderia regular essas células e deixá-las com um perfil mais protetor”, relata Daniela.
“Depois disso, coletaremos amostras de fezes. A ideia é fazer a correlação com o perfil da microbiota também”, disse a orientadora do estudo.

A doença
O diabetes mellitus (DM) é composto de um grupo heterogêneo de enfermidades que possuem em comum o aumento de glicose (açúcar) no sangue (hiperglicemia). Isso ocorre por um defeito na fabricação ou ação da insulina.
Os tipos mais comuns de DM são os tipos 1 e 2. No DM1, o pâncreas é atacado pelo próprio sistema imunológico da pessoa e, por isso, ele produz pouca ou nenhuma insulina [hormônio que insere a glicose nas células]. A falta de insulina faz os níveis de açúcar no sangue subirem. Afeta mais crianças e adolescentes.
No tipo 2, o corpo desenvolve resistência à ação da insulina ou não produz insulina suficiente.
Dados do Atlas da Diabetes, da Federação Internacional de Diabetes, mostram que quase 500 mil brasileiros de todas as idades possuem DM1. O País está entre os dez com o maior número de adultos (20 a 79 anos) com diabetes no mundo.
Sobre as vantagens de administrar um probiótico, Oliveira diz que ele traz algumas vantagens em relação à insulina. “Não queremos substituir o tratamento convencional; oferecer o probiótico [um comprimido, cápsula ou iogurte] a uma criança, por exemplo, poderia evitar que a doença se desenvolva tão cedo”, conclui.
A tese Lactococcus lactis expressando HSP65 protege contra o desenvolvimento de diabetes tipo 1 por meio da indução de células dendríticas tolerogênicas via TLR2 está disponível no Banco de Teses da USP e pode ser acessada neste link.
Mais informações: jeffersonelias@usp.br, com Jefferson Elias de Oliveira; danicar@usp.br, com Daniela Carlos Sartori