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Entrevista: ‘Temos que criar uma UTI climática’, diz a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva

Entrevista: ‘Temos que criar uma UTI climática’, diz a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva

A auxiliar de Luiz Inácio Lula da Silva deve entregar nos próximos dias ao presidente um plano de prevenção de acidentes

A ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, avalia que a tragédia provocada pelas chuvas no Rio Grande do Sul, que já deixou mais de cem mortos, serve de alerta para o desequilíbrio do clima global. Segundo ela, o episódio é “uma pedagogia altamente dolorosa” para o país: o luto. A auxiliar de Luiz Inácio Lula da Silva deve entregar nos próximos dias ao presidente um plano de prevenção de acidentes. Nas discussões, está em debate a criação de um estatuto jurídico para reconhecer que existe uma emergência climática permanente.

Qual é o principal sinal que essa tragédia traz para a população brasileira?

Acho que é um sinal de reconhecer e aceitar esse fato, porque a pior coisa que tem é não ter consciência do risco. A outra é ter uma sociedade mobilizada para exigir de governos e empresas fazerem o dever de casa. Sem falar na outra parte, que é, digamos, lenta, porque não vemos a seca correndo atrás das pessoas, mas ela vai igualmente prejudicar as safras inteiras e vai igualmente prejudicar as possibilidades de renda de muita gente. É até difícil falarmos com essa força toda, porque antigamente quem falava assim era chamado de ecoterrorista. Agora, a natureza nos colocou num lugar de realistas. Só os negacionistas não vão atentar para o que está acontecendo. Temos que criar uma UTI climática.

Após a tragédia no Rio Grande do Sul, há mudança dos setores mais refratários a preocupações ambientais?

Tem uma ampliação, sim, da consciência para todos. Agora nós já estamos agindo no fato estabelecido. No entanto, na mesma semana que aconteceu isso, foi pautado no Congresso, a redução da reserva legal na Amazônia, que eu espero que isso possa sair do debate. Porque mais destruição de floresta é mais emissão de dióxido de carbono. Mais destruição de floresta é mais desarranjo climático.

Falta ação efetiva do governo para barrar essas pautas?

O que é uma ação mais efetiva de um governo democrático? É dialogar. Isso nós temos feito.

Na prática, como será o plano de prevenção de acidentes climáticos?

O plano é uma tentativa de fazer um deslocamento da necessária abordagem de gestão do desastre para a gestão do risco. Nós não temos um similar (no mundo). A chuva vai acontecer do mesmo jeito, a seca vai acontecer do mesmo jeito, porque não se fez o trabalho preventivo a partir da Rio-92. Não só o Brasil, mas o mundo inteiro. O plano tem a característica de preparação e adaptação. Não é um plano de curto prazo. É um plano de médio e longo prazos. É um plano que já está em andamento, mas passa a ter uma estrutura.

Tivemos mais de cem mortos e milhares de desabrigados após as enchentes no Rio Grande do Sul. Como o plano desenhado pelo governo mudaria esse cenário?

Queremos reduzir ao máximo a perda de vidas, danos materiais. Que possamos ser o máximo previdente. Temos alguns municípios que, sem dúvida, estão numa UTI climática. Temos que olhar para essa UTI climática sem que seja só o trabalho dos intensivistas na hora que as coisas estão acontecendo. Do ano passado para cá, no Rio Grande do Sul teve uma mudança de comportamento. Se considerarmos que tivemos mais de 40 mil salvamentos e se essas pessoas não tivessem sido salvas, que realidade nós poderíamos ter? Se muitas pessoas não tivessem saído das áreas antecipadamente, que realidade nós teríamos? O estado está praticamente todo embaixo d’água.

Desde fevereiro do ano passado, a senhora fala do plano. Por que a demora?

Não é uma questão de demora. Quando se cria algo que é inédito, que não tem um similar e onde você se espelhar, é um processo de tentativa e erro. Você me pergunta: “Vocês vão conseguir botar algo de pé nessa magnitude?” E eu te digo: estamos trabalhando incansavelmente para conseguir. Nós temos dificuldades, inclusive, nas abordagens legais. Nós não temos o estatuto jurídico da emergência climática. Temos debatido com outros ministérios. No meu entendimento, seria reconhecer que existe emergência climática em situação permanente. A calamidade tem um prazo de duração. Será um processo continuado de ações. Em muitos municípios, vai ter que convencer que uma parte dos recursos deve ser direcionada para fazer a limpeza do rio e que parte da população tem que sair daquele bairro.

Há casos de alterações de normas ambientais nos estados. É possível o governo federal ter controle?

Temos o sistema nacional de meio ambiente. Os estados e os municípios não podem flexibilizar normas para diminuir os cuidados ambientais. Eles só podem mudar se for para aumentar. Em relação, por exemplo, às áreas de proteção permanente, margem de rios, enfim, costas, houve uma mudança no governo anterior no Congresso, que permitiu aos municípios aproximar a construção o máximo da margem dos rios, dos lagos e assim por diante. Infelizmente, isso foi uma alteração feita pelo Congresso.

Há alguma ideia de legislação que permita um maior controle?

Nós já temos uma excelente lei de crimes ambientais. Já temos um sistema nacional de unidade de conservação. Temos uma série de marcos regulatórios que são considerados um dos melhores do mundo. O que nós precisamos fazer é implementar nas diferentes instâncias. Acho que estamos tendo uma pedagogia altamente dolorosa, que é a pedagogia do luto, infelizmente. Acho que está ensinando a todos nós. Os cientistas estão dizendo que já virou a chave. Já estamos nesse novo normal, de que o que era extremo agora vai virar o normal. E o extremo não sabemos ainda o que é.

A autoridade climática, uma ideia de campanha de Lula, vai sair do papel?

Neste momento, estamos focados no plano. Independentemente disso, estamos trabalhando a prevenção na lógica do que nós já temos. Temos ações de prevenção já sendo feitas, com o PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), que tem recursos para encostas, para drenagem. O problema é como se organiza isso e cria um operador para fazer essa dinâmica no governo. A ideia da autoridade era pensada para ser um operador para essas dinâmicas. Mas para criar novas estruturas há restrições fiscais. Não se cria uma nova estrutura sem que isso signifique ter o apoio do Congresso. É um debate que continua vivo no governo.

Não é incoerente, neste cenário, buscar a exploração de petróleo na Foz do Rio Amazonas?

Tem que olhar como cada país vai planejar a sua transição para o fim do uso de combustível fóssil. Na Foz do Amazonas, a licença já foi negada duas vezes em função de argumentos ambientais.

Lula montou uma frente ampla. Vê antagonismo à pauta ambiental no governo?

Eu vejo que tem uma liderança do presidente Lula orientando a todos nós nas metas que ele estabeleceu. Ele estabeleceu o desmatamento zero. Temos 19 ministérios trabalhando para o desmatamento zero.

Aliados apontam que a senhora aparece pouco no governo. Como responde?

O objetivo não é aparecer. No primeiro ano reduzir o desmatamento em 50%, não é uma entrega? Dos 80 programas do Plano Plurianual, 54 têm ações de sustentabilidade. Temos uma ação que faz com que o programa de agricultura de baixo carbono, que representava 0,8%, passa a ser contemplado em todo o Plano Safra. São entregas. O objetivo não é aparecer. Se for para aparecer, não precisa ser ministro.