Entenda como as mudanças climáticas afetam a Antártida e por que devemos nos preocupar
O colapso de uma plataforma de gelo e o registro de altas temperaturas no continente levaram a Organização Meteorológica Mundial a alertar que eventos extremos não devem mais ser subestimados
Em meados de março, uma plataforma de gelo entrou em colapso no Leste da Antártida. No mesmo período, o continente mais gelado do planeta registrou a temperatura mais alta da série histórica. Quase simultâneos, os eventos acenderam um alerta na comunidade científica, estimulando o questionamento: quão perto estamos do “ponto de não retorno” causado pelo aquecimento global?
Os acontecimentos recentes no continente, conhecido como o “gigante adormecido”, levaram a Organização Meteorológica Mundial (OMM) a alertar, na última semana, que a Antártida tem registrado temperaturas cada vez mais extremas, o que pode ser um fator preocupante em meio às mudanças climáticas. Segundo a agência da ONU, a ocorrência de chuvas — que antes eram raras — e alterações nas plataformas de gelo apontam para uma situação que “não deve ser subestimada”.
A onda de calor histórica em março foi um marco inédito nos 60 anos de dados acumulados pela instituição. A região atingiu o recorde de cerca de 40 graus acima do normal na estação meteorológica Dome Concordia — tradicionalmente, a média de temperatura no continente é de aproximadamente 50 graus negativos.
Se, por exemplo, esse aumento tivesse acontecido no Sudeste do Brasil, o município de São Paulo — onde a temperatura média é de cerca de 22 graus em março — teria registrado excepcionais 62 graus, afirma Camila Carpenedo, doutora em Meteorologia pelo Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo e pesquisadora do Centro Polar e Climático da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Em uma postagem no Twitter, o glaciologista da Universidade de Minnesota, Peter Neff, apontou como possível explicação para a temperatura recorde na Antártida uma combinação de eventos meteorológicos causada, sobretudo, por um fenômeno associado ao deslocamento de ar quente e úmido da Oceania — como um “rio atmosférico” sobre a região.
Segundo Carpenedo, ainda não é possível afirmar que houve uma relação direta com o aquecimento global, confirmação que demandaria mais estudos da comunidade científica. Mas, apesar da ressalva, ela não descarta a possibilidade.
— Não foi um evento dentro da normalidade: foi algo histórico e excepcional que, muito provavelmente, teve relação com as mudanças climáticas — afirma. — Ainda mais pensando no contexto atual e levando em consideração o último relatório do IPCC, que mostra que se tem observado um aumento na frequência e intensidade das ondas de calor. As mudanças climáticas vão deixar esses eventos extremos ainda mais intensos e frequentes.
Outro sinal de alerta foi o desabamento da plataforma Conger, localizada no lado Oriental, o mais estável do continente — e mais gélido do planeta. Com cerca de 1.200 km² (o equivalente à cidade do Rio de Janeiro), a Conger colapsou entre 14 e 16 de março, de acordo com Catherine Colello Walker, cientista da Nasa e da Instituição Oceanográfica Woods Hole, em postagem no Twitter.
Apesar de ocorrerem no mesmo período, os dois eventos provavelmente não estão diretamente ligados, afirma Francisco Aquino (conhecido por Chico Geleira), climatologista e diretor substituto do Centro Polar e Climático da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, para quem a Conger se rompeu pelo crescente aquecimento dos oceanos no entorno da Antártida. Segundo o pesquisador, tempestades de vento e ondas de calor contribuem para o enfraquecimento dessas plataformas.
Embora seja algo natural, o rompimento de plataformas de gelo, explica Aquino, pode ser exacerbado pelo aquecimento global, contribuindo para um avanço mais acelerado das geleiras em direção ao oceano. Geleiras, por definição, têm de se movimentar. O alerta é a aceleração de um processo natural como consequência do aquecimento das águas.
— Esse é um processo que a gente monitora há décadas e agora começa, dentro do cenário de mudanças climáticas e alteração da circulação geral da atmosfera, a identificar mais eventos extremos marcantes — diz o climatologista. — É preciso lembrar que as regiões polares são lugares desses eventos extremos. As temperaturas chegam a menos cem graus em alguns setores da Antártida, e a menos 30 graus no auge do verão. Tudo mostra que essa mudança climática global antropogênica está ficando cada vez mais presente e frequente no continente, surpreendendo por conseguir acessar até as áreas mais interiores.
Imagem de satélite divulgada pelo Centro Nacional do Gelo dos Estados Unidos (USNIC) mostra o iceberg C-38, que colapsou da plataforma de Conger, no leste da Antártida — Foto: US National Ice Center
‘Geleira do apocalipse’
Ao contrário da Antártida Oriental, que tem sido menos impactada pelo aquecimento global, a região Ocidental, que engloba a Península Antártica — a Noroeste do continente e mais próxima à América do Sul —, é uma das mais afetadas em todo o planeta. Segundo a OMM, ela registrou um aumento de cerca de 3 graus nos últimos 50 anos. Dada sua condição de maior instabilidade, é a mais estudada por cientistas de todo o mundo.
É por isso que o rompimento da plataforma Conger acendeu também um alerta sobre as formações que ficam nas áreas mais vulneráveis do continente, como a Thwaites, também conhecida como “geleira do apocalipse”.
Com cerca de 190 mil km² (equivalente à área da Flórida), o glaciar Thwaites é atualmente responsável por cerca de 4% do aumento global do nível do mar, com 50 bilhões de toneladas de gelo despejadas por ano. Se desmoronasse por completo, teria o potencial de desencadear um aumento de aproximadamente dois metros no nível do oceano. Apesar de esse desfecho não ser provável, esse tipo de perspectiva já é motivo de alerta, aponta o glaciologista Jefferson Cardia Simões, vice-presidente do Comitê Internacional de Pesquisa Antártica.
Ele lembra que, segundo o relatório mais recente do IPCC, a elevação do nível do mar já é de cerca de 3,5 milímetros por ano, o que pode levar a um aumento de 35 centímetros a 1,20 metros até 2100. No entanto, essas previsões não consideram um eventual colapso da Thwaites e da geleira da Ilha Pine, que também fica do lado Ocidental e tem 175 mil km². Juntas, elas podem fazer essa estimativa duplicar.
— Só a Thwaites pode, nas próximas duas ou três décadas, começar a contribuir com 10 a 20 centímetros no aumento do nível do mar. Não existe maneira de entrar em total colapso, mas aumentaria muito a proporção, ultrapassando a estimativa do IPCC — explica Simões. — Existem cenários indicando que seu colapso total faria o nível médio dos mares chegar a até 1,80 metro, o que seria um caso muito mais extremado.
Segundo Simões, a estrutura da Thwaites e da geleira da Ilha Pine explica sua importância para o mundo. Como estão em contato com uma crosta abaixo do nível do mar, as duas tendem a ser mais sensíveis às mudanças climáticas. À medida que a temperatura dos oceanos se eleva, a interface delas (que está em contato com a crosta) acaba se lubrificando, aumentando seu potencial de deslizar mais rapidamente para o oceano.
— Temos que entender que o nível médio dos mares ao longo dos últimos milhares de anos tem sido controlado principalmente pela massa de gelo que é derretida e vai pro oceano e vice-versa — diz Simões. — Hoje, a Groenlândia é a maior responsável para a elevação no nível dos oceanos. A grande questão é quando, nas próximas duas ou três décadas, a Antártida vai se tornar a maior contribuinte para esse aumento.
Há risco de a Antártida derreter por completo?
Com 13,6 milhões de km² e uma camada de gelo de até 4,8 km de espessura em determinados setores, é compreensível a preocupação com a potencial catástrofe desencadeada pelo derretimento total da Antártida — o que não ocorreu nos últimos 35 milhões de anos.
Se todo seu gelo derretesse, num processo que levaria milhares e milhares de anos, a elevação do nível médio dos oceanos seria de cerca de 60 metros, diz Simões. Para este século, a previsão do IPCC é que esse aumento se intensifique a partir de 2040, com grande risco de parte do manto da Antártida Ocidental entrar em colapso ao longo dos anos subsequentes.
— Cenários mais extremos, como o aumento de até 4 graus na temperatura global, poderiam levar a aumento de cerca de seis metros no nível médio dos mares. Mas tudo é uma questão de escala temporal e da contribuição do nível do mar. O que nós sabemos é que não podemos dizer que todo o gelo do planeta vá derreter. Se fosse, seria uma catástrofe total.