Emergência da vida na Terra é simulada em experimento

Apesar dos temores levantados pela biologia sintética, a construção de células sintéticas, o primeiro passo rumo a uma vida artificial, tem inúmeros adeptos entre os cientistas.
Mas, antes de qualquer avanço mais controverso, Sai Katla e colegas da Universidade de Harvard, nos EUA, estão preocupados em responder àquela questão que pode ser considerada o mistério supremo da biologia: Como a vida começou?
Eles acreditam estar chegando mais perto de uma resposta ao criar sistemas químicos artificiais semelhantes a células, que permitem simular de modo controlado o metabolismo, a reprodução e até a evolução – ou seja, as características essenciais da vida.
São sistemas simples, mas que podem ser construídos a partir de moléculas não bioquímicas – não é vida realmente, mas uma simulação do comportamento da vida.
“Esta é a primeira vez, até onde sei, que alguém fez algo assim: Gerar uma estrutura que tem as propriedades da vida a partir de algo completamente homogêneo no nível químico, e desprovido de qualquer semelhança com a vida natural,” disse o professor Juan Mercader, coordenador da pesquisa.

[Imagem: Sai Krishna Katla et al. – 10.1073/pnas.2412514122]
Testando as teorias
Todas as formas de vida compartilham alguns atributos básicos: Elas lidam com informações químicas, metabolizam alguma forma de energia – como consumir alimentos ou fazer fotossíntese – para se sustentar e crescer, se reproduzem e evoluem em resposta ao ambiente.
Mercader começou elaborando equações matemáticas para a física e a química básicas da biologia, partindo das condições existentes em ambientes astrofísicos. Então, ele e seus alunos usaram suas soluções como orientação para sintetizar vida artificial em um tubo de ensaio.
A ideia não é nova, claro, mas durante anos esses esforços permaneceram como explorações teóricas, sem demonstrações experimentais. Isso começou a mudar com o advento da automontagem induzida por polimerização, um processo no qual nanopartículas desordenadas são projetadas para emergir espontaneamente, se auto-organizar e se montar em objetos estruturados em escalas de milionésimos ou bilionésimos de metro.
Isso permitiu dar vida às teorias – quase literalmente. Neste novo experimento, a equipe buscou demonstrar como a vida poderia surgir a partir de materiais semelhantes aos disponíveis no meio interestelar – as nuvens de gases e partículas sólidas remanescentes da evolução das estrelas em uma galáxia – e utilizando a energia luminosa das estrelas. Um tubo de ensaio serviu como a versão de laboratório do famoso “laguinho quente” de Darwin.

[Imagem: Grace DuVal/Harvard]
Análogos de células que evoluem
A equipe misturou quatro moléculas não bioquímicas (mas baseadas em carbono) com água dentro de frascos de vidro cercados por lâmpadas LED verdes. Quando as luzes foram acesas, a mistura reagiu e formou anfifílicos, moléculas com partes hidrofóbicas (resistentes à água) e hidrofílicas (que gostam de água).
As moléculas se automontaram em estruturas semelhantes a bolas, chamadas micelas. Essas estruturas retiveram o fluido em seu interior, onde ele desenvolveu uma composição química diferente e se transformou em vesículas, estruturas semelhantes a células – são essencialmente sacos cheios de fluido.
Por fim, as vesículas ejetaram mais anfifílicos, como esporos, ou simplesmente se romperam – e os componentes soltos formaram novas gerações de estruturas mais semelhantes a células. Mas o número crescente de esporos expelidos diferiu ligeiramente entre si, com alguns se mostrando mais propensos a sobreviver e se reproduzir, modelando assim o que os pesquisadores chamaram de “um mecanismo de variação hereditária frouxa”, a base da evolução darwiniana.
Animado, o professor Mercader caracteriza o experimento como um modelo de como a vida pode ter começado há cerca de 4 bilhões de anos na Terra. Segundo sua avaliação, um sistema similar ao que sua equipe demonstrou pode ter evoluído quimicamente e dado origem ao último ancestral comum universal – a forma primordial que deu origem a toda a vida subsequente.
“O que estamos vendo neste cenário é que você pode facilmente começar com moléculas que não são nada especiais – não como as moléculas bioquímicas complexas associadas hoje aos sistemas naturais vivos. Esse sistema simples é o melhor para começar esse negócio de vida,” afirmou ele.
Artigo: Self-reproduction as an autonomous process of growth and reorganization in fully abiotic, artificial and synthetic cells
Autores: Sai Krishna Katla, Chenyu Lin, Juan Pérez-Mercader
Revista: Proceedings of the National Academy of Sciences
Vol.: 122 (22) e2412514122
DOI: 10.1073/pnas.2412514122