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Edição genética pode ‘ressuscitar’ árvores; entenda como funciona a técnica

Edição genética pode ‘ressuscitar’ árvores; entenda como funciona a técnica

THE WASHINGTON POST – Kyra LoPiccolo se agachou na frente de uma caixinha branca sob o sol quente do verão. Ela abriu a caixa térmica e arrancou do gelo um pequeno frasco de pólen – a potencial salvação para uma espécie inteira. Puxando um galho de uma imensa castanheira americana, pegou uma delicada lâmina de vidro empoeirada de amarelo e esfregou o pólen descongelado em algumas das flores da árvore. A poucos metros de distância, dois colegas desta estação de pesquisa de campo estavam em um guindaste, trabalhando em galhos mais altos.

A equipe envolve as flores com sacos brancos e os amarra – para controlar o fluxo de pólen. Em poucos meses, as castanhas geneticamente modificadas estarão prontas para a colheita. “Nós as abrimos e aí parece Natal”, disse Kyra, recém-formada na Faculdade de Ciências Ambientais e Florestais da Universidade Estadual de Nova York (SUNY ESF). Essas árvores já dominaram a paisagem dos Apalaches, com bilhões de castanheiras americanas se erguendo em florestas frondosas que iam do Maine ao Mississippi. Por volta do início do século 20, um fungo exótico quase extinguiu a espécie. Hoje elas ainda brotam na natureza, mas raramente atingem a maturidade, estão “funcionalmente extintas”.

Kyra e outros pesquisadores da SUNY ESF estão cultivando nos campos de Syracuse castanheiras americanas que conseguem resistir a essa infecção: metade das castanhas produzidas com o pólen geneticamente modificado carregará DNA destinado a combater a praga. Os pesquisadores agora estão prontos para semear na natureza, correndo para se tornarem os primeiros nos Estados Unidos a usar a edição genética para trazer uma árvore florestal de volta à antiga glória.

Mas, antes, o projeto está buscando a aprovação não apenas de três agências federais, mas também de aficionados da castanha preocupados com a alteração do genoma. O comércio global e as mudanças climáticas vão piorar a propagação e a gravidade das pragas e pestes arbóreas. As colinas ao redor de Syracuse estão cobertas de freixos mortos por brocas cor de esmeralda. Os antigos pinheiros bristlecone do oeste estão sucumbindo a surtos de besouros. Até 1 em cada 6 árvores nativas dos 48 Estados está sob risco de extinção.

Caminho

Os cientistas se perguntam se é possível restaurar florestas cultivando árvores melhores, o que também ajudaria a combater as mudanças climáticas. De vida longa e crescimento rápido, a castanheira americana é uma esponja poderosa para as emissões de gases de efeito estufa. “Estamos abrindo um caminho para salvar outras espécies de árvores, e isso pode até ir além das árvores”, disse Bill Powell, diretor do Projeto de Pesquisa e Restauração da Castanheira Americana da SUNY ESF.

Obter aprovação para começar a plantar, disse Powell, seria um “grande, grande sucesso”. Mas ele reconheceu que é algo que ninguém fez antes – e exigiria um esforço hercúleo. Sua equipe também precisaria de ajuda para espalhar castanheiras resistentes à praga por centenas de quilômetros de montanhas. “Sempre digo que é um projeto secular. Vai ser preciso que a população em geral queira plantar essas árvores”, disse ele.

Não é uma certeza: alguns amantes das castanheiras desconfiam da ideia de mexer com aquilo que mais de um escritor chamou de “árvore perfeita” da natureza. E os reguladores precisam dar o aval. “A grande questão de política pública é: devemos trazer de volta as florestas com castanheiras geneticamente modificadas?”, disse Edward Messina, diretor do Escritório de Programas de Pesticidas da Agência de Proteção Ambiental (EPA, na sigla em inglês), uma das agências que estão avaliando a aprovação. “É uma pergunta muito difícil.”

Por milênios a castanheira americana derramou no chão da floresta o sustento de gaios, esquilos, ursos e pessoas. Mas, quando Nat King Cole cantou Chestnuts roasting on a open fire (Castanhas assando na fogueira), a árvore já havia quase desaparecido. Os trabalhadores do Zoológico do Bronx foram os primeiros a notar, em 1904, as feridas purulentas. Na primavera seguinte, quase todas as castanheiras do parque apresentavam sinais de infecção.

O fungo, trazido de uma espécie diferente de castanheira importada para a agricultura, abre cancros na casca da árvore. Quando a infecção envolve todo o tronco, a circulação de nutrientes se interrompe. As folhas acima desse ponto caem e morrem – e a árvore está condenada. O patógeno, chamado Cryphonectria parasitica, se espalhou em todas as direções. A crise levou o Congresso a incumbir o Departamento de Agricultura dos Estados Unidos de inspecionar e colocar em quarentena as importações agrícolas. Mas a lei de 1912 chegou tarde demais para a espécie. Em poucas décadas, o patógeno quase erradicou a espécie das florestas.

Durante anos, os silvicultores criaram castanheiras americanas junto com as primas asiáticas das árvores, que carregam uma resistência natural ao fungo. Mas, com centenas a milhares de genes envolvidos, os esforços para produzir um híbrido que floresça na natureza tiveram apenas um sucesso mediano, de acordo com Jared Westbrook, geneticista e diretor de ciência da Fundação da Castanheira Americana, uma organização sem fins lucrativos que busca resgatar a árvore. “Chegamos a essa percepção crucial: precisamos de mais uma fonte de resistência para que essas árvores possam sobreviver”, disse ele.

Os contratempos levaram Herb Darling, cofundador da filial da fundação em Nova York, a procurar Powell para falar sobre a possibilidade de recorrer à biotecnologia para ressuscitar a espécie. Professor de patologia florestal em Syracuse, Powell havia escrito sua tese de doutorado sobre a praga da castanheira. Na década de 1990, enquanto folheava resumos de artigos recentemente publicados, ele teve um momento de iluminação: identificou um gene que poderia proteger a castanheira. “Liguei imediatamente para meu colega, Chuck Maynard, e disse: ‘Temos que tentar isso’”.

Kyra LoPiccoloKyra e outros pesquisadores da SUNY ESF estão cultivando nos campos de Syracuse castanheiras americanas que conseguem resistir a fungo. Foto: Lauren Petracca/The Washington Post

Kyra LoPiccoloKyra e outros pesquisadores da SUNY ESF estão cultivando nos campos de Syracuse castanheiras americanas que conseguem resistir a fungo. Foto: Lauren Petracca/The Washington Post© Fornecido por Estadão

Solução

O fungo que infecta as castanheiras prospera secretando uma substância química chamada ácido oxálico, que mata as células e permite que o patógeno se alimente do tecido morto. Mas muitas outras plantas, como bananas, morangos e trigo, evitam esse destino produzindo uma enzima chamada oxalato oxidase, que decompõe a toxina. Em 2014, Powell e Maynard já haviam adicionado com sucesso o gene do trigo às castanheiras e estavam cultivando árvores resistentes a infecções. A dupla batizou uma linhagem de Darling 58, em homenagem a Herb.

No pomar de Syracuse, em junho deste ano, uma equipe trabalhando com Andy Newhouse, biólogo e diretor assistente do projeto de restauração, enfiou ganchos em seus minúsculos troncos para intencionalmente infectá-los com o fungo. Os resultados foram dramáticos: na árvore que carregava o gene resistente à doença, uma ferida cinza do tamanho de uma moeda de dez centavos inchou no local da incisão – indicando uma infecção da qual a árvore se viria a se recuperar.

Na árvore sem o gene, uma fenda laranja-ferrugem já se espalhava pela metade do tronco. “Está matando a árvore”, disse Newhouse. “Quase certamente vai tomar tudo dentro de um mês.” Experimentos de inoculação anteriores mostraram que cancros em castanheiras americanas comuns cresceram até quadruplicar o comprimento daqueles de suas contrapartes com material genético transferido do trigo. “Fazer uma árvore transgênica – odeio dizer isso assim – não é tão difícil”, disse Newhouse. O obstáculo mais difícil da Darling 58 é ganhar a aprovação regulatória. Para distribuir a linhagem Darling 58 na natureza, a equipe de restauração aguarda uma decisão de três reguladores federais – um processo que começou em 2020.

A EPA está analisando como a enzima da árvore transgênica irá interagir com as pessoas e o ambiente da floresta. A agência sanitária está avaliando a segurança nutricional das castanhas. E o Serviço de Inspeção de Saúde Animal e Vegetal do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos está analisando como a árvore pode afetar insetos e outras plantas. “Dez anos atrás, antes de iniciarmos esse processo, fomos informados de que provavelmente não seria realista fazer tudo isso com nosso pequeno projeto de pesquisa da universidade”, disse Newhouse, responsável por representar a Darling 58 no processo regulatório.

O grupo fez os próprios testes em castanheiras regulares e transgênicas, comparando os efeitos em abelhas polinizando suas flores, insetos se banqueteando com suas folhas frescas e girinos de rã devorando seus restos em decomposição. “Não houve diferença”, disse Powell.

Os cientistas se perguntam se é possível restaurar florestas cultivando árvores melhores, o que também ajudaria a combater as mudanças climáticas. Foto: Lauren Petracca/The Washington Post

Os cientistas se perguntam se é possível restaurar florestas cultivando árvores melhores, o que também ajudaria a combater as mudanças climáticas. Foto: Lauren Petracca/The Washington Post© Fornecido por Estadão

Batalha

Mas salvar uma espécie – sobretudo com engenharia genética – é tanto uma busca científica quanto uma batalha de relações públicas. Os críticos dizem que liberar a árvore transgênica é executar um experimento maciço e irreversível na natureza. Durante o período de comentários públicos do Departamento de Agricultura, centenas de pessoas pediram à agência que não aprovasse a Darling 58, argumentando que não se sabe o suficiente sobre os riscos que ela representa. As castanheiras podem viver por séculos, observam essas pessoas, mas as árvores transgênicas só foram testadas por alguns anos.

Anne Petermann, diretora executiva do Global Justice Ecology Project, que ajudou a organizar a campanha contra a Darling 58, teme que o projeto leve a um uso mais comercial de árvores transgênicas, para produzir papel e madeira. Ela observou que as empresas de biotecnologia que esperam fazer maior uso de organismos geneticamente modificados ajudaram a financiar o trabalho da SUNY ESF. “Existem estudos semanais que mostram o quanto não sabemos sobre os ecossistemas florestais”, disse ela.

Algumas pessoas citam esforços passados para salvar a castanheira como uma justificativa para sua preocupação. Na década de 1910, por exemplo, os silvicultores da Pensilvânia disseram aos proprietários de terras que derrubassem árvores saudáveis em um esforço vão para impedir a propagação do fungo, uma prática que pode ter exterminado inadvertidamente castanheiras nativas com tolerância à praga. “A história da castanheira americana é uma advertência”, disse Donald Edward Davis, membro fundador da filial da Geórgia da Fundação da Castanheira Americana e autor de The American Chestnut: An Environmental History. “E, por causa disso, eu realmente acho que o público deveria ser mais cuidadoso em endossar a abordagem transgênica”.

Davis deixou a fundação depois que ela apoiou o projeto SUNY ESF em 2016. O mesmo aconteceu com Lois Breault-Melican e Denis Melican, casal que atuou como membros do conselho da filial de Massachusetts e Rhode Island. Alguns produtores, disse o casal, desistiram cedo demais de tentar selecionar castanheiras americanas resistentes à praga e criá-las com suas parentes asiáticas. “Não precisamos de engenharia genética para trazer a castanha de volta”, disse Melican. “Elas estão voltando. Basta ter paciência”.

Réplica

Mas Powell respondeu que o cruzamento transfere muito mais genes entre as espécies. “A engenharia genética na verdade é um procedimento menos arriscado do que muitas coisas que fizemos no passado”, disse ele. “Somos muito precisos. Estamos movendo apenas um pequeno número de genes para dentro da árvore”.

Powell espera que seu trabalho estimule esforços semelhantes entre os geneticistas. “Isso vai desencadear muitas outras pesquisas sobre árvores que as pessoas basicamente queriam fazer, mas não podiam porque tinham aquela barreira na frente delas”, disse. Sua equipe já está investigando maneiras de inserir genes resistentes à ferrugem em castanheiras chinquapin, uma parente próxima das castanhas americanas, e de modificar olmos que possam resistir a uma doença bacteriana sem cura conhecida.

Salvar uma espécie – sobretudo com engenharia genética – é tanto uma busca científica quanto uma batalha de relações públicas. Foto: Lauren Petracca/The Washington Post

Salvar uma espécie – sobretudo com engenharia genética – é tanto uma busca científica quanto uma batalha de relações públicas. Foto: Lauren Petracca/The Washington Post© Fornecido por Estadão

Na Universidade de Purdue, pesquisadores tentaram ajustar os genes dos freixos para que eles sobrevivam à broca esmeralda. Com avanços como o CRISPR, uma ferramenta de edição genética vencedora do Prêmio Nobel que é mais rápida, mais barata e mais precisa do que suas antecessoras, mais oportunidades se abrirão para os engenheiros genéticos.

Por enquanto, a Darling 58 continua seu caminho na burocracia. “Esta análise em particular está nos tomando um pouco mais de tempo”, disse o porta-voz do Departamento de Agricultura, Rick Coker, observando que a agência ainda precisa publicar análises preliminares, coletar dados e finalizar documentos. Os pesquisadores esperam que as três agências tomem uma decisão final até o próximo verão.

Em última análise, a opinião pública será essencial para que a restauração possa avançar, afirmou Messina, da EPA. Sua equipe avaliará os benefícios do projeto, “que posso dizer que são muitos, com alguns riscos identificados”. “Este caso fica bem na interseção da ciência de ponta com as considerações de políticas públicas”, disse, em videochamada. Ainda assim, a questão permanece, acrescentou: “Devemos fazer uma coisa só porque conseguimos fazer?”