Do passado ao futuro, mulheres do RECA moldam a bioeconomia amazônica com esperança

Da pioneira Aldenia à jovem Clenilda: mulheres mostram que a bioeconomia amazônica também é feita de coragem e resistência
Na varanda sombreada pela copa das árvores, Aldenia dos Santos Gama serve café com a mesma tranquilidade com que narra meio século de história. São 76 anos de vida e 51 anos de caminhada na região da Ponta do Abunã, entre Rondônia e o Acre – onde a floresta e a persistência humana se entrelaçam.
Professora aposentada e fundadora do Reflorestamento Econômico Consorciado e Adensado – RECA, ela lembra dos tempos em que a malária afastava famílias da região, quando o extrativismo era a única saída e as terras dadas pelo governo eram vistas apenas como espaço a ser derrubado. “Eu fiquei. Acreditei que era possível viver da floresta — e o RECA nasceu dessa necessidade do povo daqui. A cooperativa foi a saída para melhorar a vida das famílias”, conta Aldenia, orgulhosa.
Em seus 98 hectares, Aldenia cultiva cupuaçu, açaí e castanha em Sistemas Agroflorestais – modelo de restauração florestal. Ao aumentar a biodiversidade, seu terreno sequestra carbono e mantêm a floresta em pé. Aldenia chama seu pedaço de terra de “paraíso”. Entre cuidados com cachorros e gatos, ela caminha todos os dias pelas áreas reflorestadas, supervisionando de perto os resultados de uma aposta feita décadas atrás. “Hoje vejo que a floresta que muitos queriam derrubar se transformou em renda. Eu ajudei a plantar essa semente e me alegra ver que deu certo”, afirma.
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Se Aldenia representa as raízes do passado que hoje dão frutos, o futuro do RECA também é moldado por mulheres como Clenilda Souza de Oliveira, que há três anos decidiu fincar os pés no sítio e se associar à cooperativa. Filha de produtor ligado a um projeto de carbono, ela carrega no sangue a relação com a terra, mas só recentemente assumiu o protagonismo de sua própria produção. “Meu pai sempre participou das reuniões e assembleias do RECA, mesmo depois de deixar a lida diária. Isso me inspirou a continuar. Hoje, tenho orgulho de trilhar esse caminho por conta própria”, afirma.
Na propriedade, Clenilda cultiva frutas como maracujá e cupuaçu, mas é no abacaxi que encontrou sua principal fonte de renda. “É a fruta que garante retorno mais rápido, mas eu não paro de diversificar. A ideia é investir também em café e ampliar a área de cupuaçu”, explica. Além da rotina de campo, ela é quem leva a produção até o RECA e acompanha de perto o processo de beneficiamento.
A formação em técnica em agropecuária lhe dá segurança para lidar com diferentes culturas. E é no aprendizado coletivo da cooperativa que ela enxerga seu maior diferencial. “As capacitações e oficinas fazem toda a diferença. A gente aprende a planejar, a cuidar melhor do solo, a agregar valor. Não é só vender fruta, é crescer junto com os outros”, reforça.
Hoje, cerca de 30% dos mais de 400 produtores e 4 mil trabalhadores ligados ao RECA são mulheres, e elas ocupam tanto os espaços produtivos quanto os de decisão. São pioneiras como Aldenia e novas lideranças como Clenilda que mostram a força feminina como fio condutor entre passado e futuro. No RECA, a bioeconomia amazônica não se mede apenas em toneladas ou hectares: mede-se também na coragem, no trabalho e na esperança semeada pelas mulheres que transformam a floresta em vida. “Eu sou das primeiras produtoras que acreditaram no RECA, né? Hoje é a cooperativa que a gente entrega e depois faz a venda”, resume Aldenia.
Aprendizado constante
A Escola Família Agrícola (EFA) Jean Pierre Mingan, localizada em Acrelândia (AC), nasceu de um esforço coletivo do RECA para garantir que filhos e filhas de produtores tivessem acesso a uma formação pensada para o campo. Com o tempo, foi incorporada ao sistema estadual de ensino, mas mantém vivo o espírito comunitário que lhe deu origem.
Hoje, mais de uma centena de estudantes percorre essa rotina intensa, que une ensino médio e curso técnico em agropecuária, num modelo pedagógico que alterna períodos de internato na escola e atividades práticas nas propriedades familiares.
O diretor, Ricardo Barros, explica que a filosofia da EFA é inspirada no movimento internacional das Escolas Famílias Agrícolas. “Aqui o estudante não aprende só a teoria. Ele aplica o conhecimento na prática, seja no cultivo de hortaliças, no manejo de animais ou em visitas técnicas nas propriedades da comunidade. O ensino é integral, do nascer ao pôr do sol”.
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Entre os jovens está Paula Souza, 17 anos, aluna do segundo ano. Filha de agricultores de Nova Califórnia, cresceu ajudando o pai na agricultura. “Eu não me via fazendo outra coisa que não fosse ligada ao campo. Quando descobri a EFA, percebi que era aqui o meu lugar”, conta.
A rotina de Paula começa cedo: às 5h da manhã, ela e os colegas se dividem em equipes responsáveis pela limpeza, cuidados com a horta e organização do espaço. Depois, seguem para as aulas teóricas e, mais tarde, práticas em campo — que vão de castração de animais à produção de maracujá.
“Aprendi coisas que nunca imaginei, como inseminação, o uso correto de calcário, a identificar deficiências nas plantas só pelas folhas. Antes eu apenas repetia o que via na família. Aqui eu entendi o que acontece no solo, no cultivo. Isso muda a forma de trabalhar”, explica.
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O aprendizado técnico tem impacto direto na cooperativa que deu origem à escola. Com apoio do Programa COPAÍBAS, o RECA ampliou a inserção dos jovens em suas indústrias e pesquisas de campo. Hoje, cerca de 80% da força de trabalho da cooperativa é formada por jovens oriundos da EFA, contratados como estagiários ou já inseridos no mercado. Para Ricardo, coordenador das práticas, esse elo é decisivo: “A escola não só prepara o estudante, mas integra ele ao RECA, ao produtor, à vida real do campo. É um ciclo”.
Paula, que sonha em trabalhar no RECA depois de formada, vê nisso um caminho natural. “Ali é muito importante, porque se aprende muito e se trabalha com o produtor. Se surgir a oportunidade, quero abraçar. Aqui, o que a gente aprende não é só para passar na prova: é para a vida, é para oferecer o melhor ao produtor”, reforça.
Mais do que um espaço de ensino, a Escola Família Agrícola Jean Pierre Mingan é também um símbolo: a prova de que investir em educação é garantir a continuidade da floresta em pé e da bioeconomia amazônica. “Sem a escola, eu teria que sair para a cidade. Aqui, eu me encontrei”, diz Paula.