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Dia Mundial dos Oceanos: Maior fronteira desconhecida da Terra, mares são menos mapeados que Lua e Marte

Dia Mundial dos Oceanos: Maior fronteira desconhecida da Terra, mares são menos mapeados que Lua e Marte

III Conferência da ONU sobre os Oceanos (UNOC), que começa amanhã, em Nice, contará com a presença de 70 chefes de Estado, entre eles o presidente Luiz Inácio Lula da Silva

Brilhantes como as estrelas no céu, milhões de minúsculos animais iluminam as profundezas dos oceanos, onde vivem criaturas que inspiram monstros, como o kraken. Nesse mundo onde a vida é a fonte de luz, vinda de milhares de espécies bioluminescentes, há lulas-gigantes, como Architeuthis dux, com tentáculos do comprimento de um ônibus, como o kraken da mitologia nórdica, tamanho suficiente para agarrar um navio. Os oceanos, o mundo dessas criaturas, permanecem em sua maior parte tão desconhecidos quanto no tempo em que o kraken e o hafgufa, o monstro marinho medieval cujo nome islandês pode ser traduzido como “aquele que engole o mar”, alimentavam o medo dos homens.

Seguem desconhecidos e à mercê de ameaça reais, como mudanças climáticas, poluição por plástico e mineração em alto-mar, todos temas da III Conferência da ONU sobre os Oceanos (UNOC), que começa dia 9, em Nice, na França. A chamada Cúpula dos Oceanos contará com a presença de 70 chefes de Estado, dentre eles o presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

O resultado esperado da cúpula é a Declaração de Nice, na qual os países se comprometerão, voluntariamente, a proteger os mares. Mas ONGs que já viram o texto que será negociado o consideraram fraco e vago. E a conferência corre o risco de fracassar antes mesmo de começar.

Cientistas destacam que os oceanos passam por mudanças profundas, como a elevação da temperatura registrada nesta década. E isso ocorre antes mesmo que se conheça sua maior parte e o impacto que essas mudanças podem causar.

O ser humano conhece melhor a superfície da Lua do que os oceanos da Terra. Em pouco mais de meio século, enquanto sondas continuam a escrutinar detalhes da Lua, não mais que 26,1% do fundo do mar já foram mapeados – em sua maior parte, zonas costeiras.

É quase nada sobre nosso próprio planeta, que tem 71% de sua superfície coberta pelos oceanos (362 milhões de quilômetros quadrados). A área do fundo dos mares a mapear equivale a quase o dobro da de todos os continentes somados.

A Lua foi inteiramente mapeada numa resolução de sete metros. Já os melhores mapas do fundo do mar só mostram lugares maiores que 4,8 km de largura. Isso significa que ignoram montanhas submarinas inteiras.

Menos de 1% do solo oceânico já foi explorado em maior detalhe, com veículos remotamente operados, mais conhecidos como ROVs, submersíveis do tamanho de um carro e equipados com sensores e câmaras.

ROV explorando um vulcão submarino — Foto: Imagem cortesia de NOAA Ocean Exploration, Voyage to the Ridge 2022
ROV explorando um vulcão submarino — Foto: Imagem cortesia de NOAA Ocean Exploration, Voyage to the Ridge 2022

O ser humano já andou pela Lua, mas ninguém tocou a maior parte das profundezas. Inexistem trajes de aquanauta que permitam mergulhar abaixo de 700 metros. E os hardsuits usados até 700 metros oferecem a mobilidade de uma armadura medieval.

“Lance uma pedrinha em qualquer lugar do oceano e muito provavelmente ela vai acabar caindo num lugar onde nenhum ser humano esteve”, gosta de dizer a oceanógrafa americana Sylvia Earle, um dos maiores nomes da exploração oceânica.

Ainda hoje expressão, “navegar por mares nunca dantes navegados”, eternizada na poesia de Fernando Pessoa, vai além de alusão às navegações portuguesas dos séculos XV e XVI e a simbolismos, continua aplicável aos oceanos reais, quando se pensa em mar profundo.

Os mapas que aparecem, por exemplo, no Google Maps são inferências por satélite, que oferecem apenas uma difusa ideia do que seja a realidade. O Oceano Austral, à volta da Antártica, é o menos conhecido. Algumas áreas dele só tiveram 1% mapeado.

Há séculos os marinheiros nórdicos já conheciam a colossal lula porque, por vezes, ela vinha dar morta à praia. Hoje, com toda tecnologia, a lula segue poucas vezes avistada, quase sempre pelos submersíveis robôs.

É nesse mar desconhecido que explora petróleo e se busca uma nova fronteira da mineração. Ainda encontramos criaturas que inspiram fantasias. Mas tentamos também compreender perigos muito maiores do que as lendas, como as transformações sofridas pelos mares, como aumento da temperatura e mudanças nos padrões de vento e correntes marinhas.

– Os oceanos são grandes reguladores do clima e do ciclo da água. Aquilo que os perturba, atinge a vida na terra também. Todos os desastres climáticos recentes estão relacionados aos mares – frisa Ronaldo Christofoletti, presidente do Grupo de Especialistas em Cultura Oceânica da Unesco e pesquisador do Instituto do Mar da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

Mesmo as águas dentro da Zona Econômica Exclusiva (200 milhas náuticas, cerca de 370,4 quilômetros a partir da linha de base costeira de um país) são pouco conhecidas. No Brasil, o apelido de “Amazônia Azul” para as águas do litoral atlântico se refere à riqueza de recursos naturais, mas cabe também para o gigantismo do desconhecimento.

– O Brasil carece de observação oceânica, de infraestrutura de pesquisa e de organização de uma base de dados sobre seus recursos – destaca Segen Estefen, diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Oceânicas (INPO), organização criada este ano e integrada por 27 universidades e 30 empresas do setor.

O alto mar, designação que compreende as águas internacionais e o fundo do mar fora da jurisdição de qualquer país, é uma área pouco conhecida pela ciência. Mas ela abarca dois terços dos oceanos e é um dos maiores reservatórios de biodiversidade do planeta. Mas apenas 1% dessas águas está totalmente protegida.

Dos mares depende toda a vida acima da superfície. Eles são os verdadeiros pulmões do mundo. Os microscópicos integrantes do fitoplâncton são responsáveis por cerca de 50% do oxigênio disponível na Terra. A Amazônia, chamada equivocadamente de pulmão do mundo, não produz mais do que 9%.

– Quando nos afastamos 10 quilômetros da costa, o conhecimento já diminui muito e quanto mais longe menor o conhecimento – diz Rodrigo Tardin, do Laboratório de Ecologia e Conservação Marinha da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Pouco dinheiro, muitos desafios

A maior iniciativa de mapeamento oceânico é o Projeto Seabed 2030, consórcio internacional estabelecido em 2017 para mapear todo o fundo do mar até 2030. O projeto é uma colaboração entre The Nippon Foundation e a Carta Batimétrica Geral dos Oceanos (GEBCO, na sigla em inglês). Tem missão semelhante a ONG Map de Gaps.

A ignorância sobre o que há nas profundezas tem várias causas. A primeira é o investimento. Devido à corrida espacial entre EUA e a antiga URSS nos anos 60, muito mais se investiu na conquista do espaço. E mais continuou se investindo mesmo após o fim da URSS, com novos países, como China, Índia e Japão entrando nesse mercado que nos anos 2000 viu chegar a iniciativa privada.

O Seabed 2030 estimou os custos de mapear os oceanos em US$ 5 bilhões. Uma continua vultuosa, mas a Nasa vai gastar US$ 7,8 bilhões somente para levar quatro astronautas para órbita da Lua em 2025.

A agência que mais investe dinheiro em pesquisa oceânica é a Administração de Oceanos e Atmosfera dos EUA (Noaa, na sigla em inglês), integrante do Seabed 2030, mas o orçamento anual dela é de US$ 5,4 bilhões, para todo o monitoramento de clima e oceanos. Já o da Nasa chegou a US$ 25,2 bilhões.

A pressão extrema e a vastidão fazem com a exploração se torne cara, perigosa e complexa. Ela demanda, por exemplo, embarcações equipadas com sonares multifeixe, que conseguem medir a profundidade e a topografia de forma mais eficiente e detalhada.

Mapeamento de montanhas submarinas — Foto: Imagem cortesia de NOAA Ocean Exploration, 2021 North Atlantic Stepping Stones: New England e Corner Rise Seamounts
Mapeamento de montanhas submarinas — Foto: Imagem cortesia de NOAA Ocean Exploration, 2021 North Atlantic Stepping Stones: New England e Corner Rise Seamounts

Mas há outros fatores. A Lua é diminuta frente ao fundo do mar. Sua superfície é aproximadamente dez vezes menor. E também é completamente seca, sem nenhum tipo de água para dificultar a visão ou impedir o rastreamento com lasers ou radares, a forma como se tem sido mapeados Marte, Mercúrio e Vênus ou qualquer outro astro que não tenha a superfície líquida ou gasosa.

Numa noite clara munido de uma pequena luneta qualquer um pode ter uma bela visão da superfície da Lua. O mesmo não é nem remotamente possível com o mar, cuja a visibilidade não chega a dezenas de metros em condições de extrema transparência.

Iniciativas como Seabed 2030 ou Map the Gaps esbarram em custos, limitações dos países à exploração de suas zonas econômicas exclusivas, que consideram violação de soberania ou espionagem de áreas de alto mar nos quais têm interesse, seja pela pesca, mineração ou petróleo.

Além das ondas

Mesmo os pontos dos mares mais próximos aos continentes são ainda relativamente inexplorados. As chamadas plataformas continentais são extensões submarinas das massas continentais e sua profundidade vai de dezenas até cerca de 200 metros. Elas se estendem da linha de costa até bordas quase sempre abruptas, chamadas de margem continental. São gigantescos penhascos, portais das profundezas.

Nas plataformas há milhares de cânions, muitos deles formados junto à foz de grandes rios, como o Amazonas e o Ganges.

Porém, diferentemente dos cânions terrestres, estes não são escavados pelos rios e sim por desmoronamentos de sedimentos acumulados no fundo. Tais cânions podem se estender por mais de 50 quilômetros e ter paredes submersas de 2 km de altura.

As plataformas são também o limite da luz do Sol. Graças aos oceanos, Yuri Gagarin, ao se tornar o primeiro ser humano a ir ao espaço, em 1961, exclamou sua famosa frase “a Terra é azul”. A faixa azul de radiação solar consegue penetrar no mar. A água absorve todas as outras cores e a luz azul é refletida. Isso dá ao nosso planeta a cor azul, quando visto do espaço.

O mar da treva eterna

Mas a luz do Sol não alcança mais do que 200 metros de profundidade em quantidade suficiente para que haja fotossíntese. Abaixo de mil metros não há qualquer luz.

Isso significa que a maior parte do planeta jamais é tocada pela luz do Sol, já que a profundidade média dos oceanos é de 3.800 metros, ou cerca de dez vezes a altura do Pão de Açúcar (390 metros).

Abaixo de cerca de 200 metros, mais ou menos o tamanho de um quarteirão, a luz já é tão tênue que a vida se transforma e muda radicalmente. Se for considerado apenas o chamado mar profundo, limitado pela luz e abaixo de 200 metros, se estima que os oceanos tenham 1 bilhão de metros cúbicos de água.

Vulcões de lama e lagos borbulhantes de metano

Mas é engano imaginar que na vastidão além das plataformas impere a monotonia. Ao contrário, à medida que se afunda, surge uma paisagem que desafia a imaginação.

Há vastas cadeias de montanhas, que se estendem por mais de 55 mil quilômetros, com picos submarinos que chegam a mais de 3 mil metros de altura (mais altos que o ponto culminante do Brasil, o Pico da Neblina, no Amazonas, com 2.995 metros) e em alguns pontos alcançam 1,6 km de largura.

Os picos em geral se formam nos limites das placas tectônicas, o quebra-cabeças colossal que compõe a superfície da Terra. Muitos desses picos são vulcões submersos, extintos ou ativos. São áreas de grande atividade sísmica.

Vulcão submerso — Foto: Imagem cortesia do NOAA Office of Ocean Exploration and Research, 2016
Vulcão submerso — Foto: Imagem cortesia do NOAA Office of Ocean Exploration and Research, 2016

À volta das cadeias montanhosas se estendem as vastas planícies abissais, cuja profundidade varia entre 3 mil e 5 mil metros de profundidade. Juntas essas planícies cobrem mais da metade da superfície do planeta.

Quase todo o solo dessas planícies é feito de lama, cuja espessura varia de 1,5 km a quase 10km, até que seja possível encontrar rocha. Toda essa lama é resultado de sedimentos provenientes da erosão de rochas oceânicas ou levados por rios, geleiras e vento. Também é composta pela decomposição de as incontáveis criaturas que morrem no mar.

As planícies não são inteiramente planas e sua geografia inclui vulcões de lama, lagos borbulhantes de metano, pequenos morros e vales.

Onde nascem monstros e maravilhas

As águas profundas são o limite para a luz solar, mas não para a vida, que fervilha. Se estima que 95% da biosfera (a quantidade de habitats disponíveis) estejam no mar profundo.

Anêmona monstro — Foto: Imagem cortesia do NOAA Office of Ocean Exploration and Research, Hohonu Moana 2016
Anêmona monstro — Foto: Imagem cortesia do NOAA Office of Ocean Exploration and Research, Hohonu Moana 2016

Nos ecossistemas de treva absoluta a base da vida são micro-organismos que fazem quimiossíntese e florescem junto a fendas hidrotermais e crateras de vulcões submarinos.

Nas profundezas imperam criaturas gelatinosas que têm ampliado o conceito de vida. Elas suportam pressão que poderia não apenas esmagar o corpo humano, mas destruir as células e reduzi-las ao nível de moléculas. Porém, se trazidos à superfície, esses animais de centenas de espécies diferentes se desfazem se alguém tenta segurá-los.

Há bilhões de peixes, crustáceos, medusas e outros animais bioluminescentes, vermes duas vezes maiores do que pessoas e invertebrados com carapaças metálicas. Devido à aparência monstruosa espécies de peixes abissais foram batizadas de dragão, ogro e fantasma. Todos brilham na escuridão. Quem não brilha, mas espreita são polvos e lulas de tentáculos que passam de dois metros.

Medusa das profundezas — Foto: Imagem cortesia de Caitlin Bailey, GFOE, The Hidden Ocean 2016: Chukchi Borderlands
Medusa das profundezas — Foto: Imagem cortesia de Caitlin Bailey, GFOE, The Hidden Ocean 2016: Chukchi Borderlands

Alguns desses seres são tão fantásticos que poderiam ter sido a inspiração para monstros lendários, como o Kraken, o Leviatã e Tritão.

O inventário mais recente organizado pelo World Register of Deep-Sea Species lista 26.363 espécies. Porém, cientistas acreditam que o número real chegue a 10 milhões.

Sob o domínio de Hades

Há ainda as grandes fendas. São 27 zonas de grandes fendas nos mares, uma região chamada de zona hadal, em alusão a Hades, o deus grego do submundo.

A mais profunda delas é a das Marianas, no Pacífico, junto às ilhas homônimas. Elas se estendem por 2.540 quilômetros, quase duas vezes a distância do Rio de Janeiro a Brasília, com uma profundidade de 10 mil metros. Isso é equivalente a um pouco mais de 13 morros do Corcovado empilhados, com a estátua do Cristo Redentor incluída.

A Fossa das Marianas poderia submergir a montanha mais alta da Terra, o Everest (8.848 metros), que ainda ficaria com mais 1.500 metros de coluna d’água sobre o seu cume.

Seu ponto mais fundo é também o lugar mais profundo de todos os oceanos, o Challenger Deep, com 10.984 metros de profundidade.

Em 2012, James Cameron chegou lá a bordo de um submersível, que ficou tão danificado pela pressão que jamais voltou a ser usado. A pressão da água é 1.086 vezes maior do que a na superfície, suficiente para esmagar um corpo humano e até mesmo a fuselagem de um avião.

Ainda assim, minúsculos invertebrados e micro-organismos são abundantes no Challenger Deep. As lulas-gigantes (Architeuthis sp.) rondam perto, a 10 mil metros de profundidade. Outras criaturas, como o peixe-ogro (Abyssal grenadiers) e o peixe-dragão (Stomiidae sp.), foram observadas em profundidades próximas ao Challenger Deep.

Uma cachoeira de 160 quilômetros

A maior cachoeira do mundo não é o Salto Angel (907 metros de queda livre) na Venezuela. É a Catarata das Hébridas, no Estreito da Dinamarca, entre a Groenlândia e a Islândia.

Ela se derrama sobre uma fenda oculta sobre as águas do Atlântico Norte. Numa área a 1.500 metros de profundidade, a água gélida e densa do Mar da Groenlândia se choca com as águas mais amenas e leves do Mar de Irminger.

O choque violento ocorre na beira da fenda e faz com que a água mais densa e pesada “despenque” abruptamente e mergulhe nas profundezas. Isso forma um fenômeno semelhante ao das cachoeiras de terra firme, mas muito maior. A catarata submersa tem 160 quilômetros de extensão e uma queda de 3.505 metros. Ela carrega cinco milhões de metros cúbicos por segundo, cerca de 24 vezes mais que a vazão do Rio Amazonas.

A maioria das fendas está no Anel de Fogo do Pacífico, uma vasta área em forma de ferradura que se estende da Ásia à América do Sul. Devido ao encontro de várias placas tectônicas há intensa atividade sísmica, que abre fendas e ergue montanhas. Se estima que 90% dos terremotos ocorram nessa região.

O maior mistério da Terra

Em palestra este ano na apresentação dos dados mais recentes do Seabed 2030, Jyotika Virmani, diretora do Schmidt Ocean Institute disse:

– O que há sob as ondas é o maior mistério em nosso planeta, e o oceano continua a revelar novas e magníficas surpresas.

– Se quisermos continuar a viver neste planeta, precisamos entrar em harmonia com os oceanos. Ou então, partir para Marte – enfatiza Ronaldo Christofoletti.

A busca pelo conhecimento vai além da curiosidade. É questão de sobrevivência.