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Desmatamento espinha de peixe: ameaça à Amazônia

Desmatamento espinha de peixe: ameaça à Amazônia

Efeito da abertura de estradas em regiões preservadas, “espinha de peixe” é um padrão de desmatamento que favorece a degradação ambiental

Tudo começa com a abertura de uma estrada principal que corta a floresta. Enquanto máquinas pesadas abrem caminho em meio às árvores, pequenas vias surgem a partir dela, formando as estradas secundárias. Assim se forma o padrão conhecido como desmatamento espinha de peixe, um tipo de desmatamento que transforma áreas antes intactas em um mosaico de degradação.

As estradas secundárias, abertas dos dois lados da via principal, geralmente surgem sem autorização ou fiscalização. Na maioria das vezes resultam de ações ilegais de madeireiros, garimpeiros, grileiros e fazendeiros, que exploram ao máximo os recursos naturais da região, suprimindo a mata nativa.

O resultado do desmatamento é conhecido como espinha de peixe por causa da aparência, que é observada a partir de imagens aéreas ou de satélite. As áreas desmatadas, vistas desse ângulo, lembram o formato da espinha do animal.

Desmatamento espinha de peixe na Amazônia

É possível observar o desmatamento espinha de peixe principalmente em regiões da floresta amazônica. Ainda em 2014, um estudo publicado pela Elsevier já havia mostrado que 95% dos desmatamentos na Amazônia, até então, haviam ocorrido há cerca de 5,5 quilômetros de estradas.

O assunto, inclusive, é destaque internacional. Em 2023, o jornal britânico The Guardian destacou que desde a construção da rodovia Transamazônica (BR-230), em 1972, o desmatamento espinha de peixe tem aumentado por toda a floresta.

Desmatamento espinha de peixe em um trecho da Transamazônica (BR-230), no Pará.
Desmatamento espinha de peixe em um trecho da Transamazônica (BR-230), no Pará | Imagem do Google Earth, ©2021 Landsat, Copernicus, Data SIO, NOAA, U.S. Navy, NGA & GEBCO

Além da Transamazônica, a abertura ou modernização de outras rodovias na Amazônia é motivo de preocupação entre os especialistas. O Ministério dos Transportes publicou, em junho de 2024, um relatório solicitando que os mais de 800 quilômetros da rodovia BR-319 fossem asfaltados.

BR-319: Rodovia Manaus-Porto Velho

Inaugurada em 1976, a BR-319 liga Manaus a Porto Velho, cruzando uma das regiões mais conservadas da maior floresta tropical do planeta. Ao longo dos anos, a rodovia ficou abandonada e foi se deteriorando. A rodovia, que ficava intransitável na época de chuvas, sofreu com a ação do tempo e o descaso do poder público. No entanto, alguns trechos permanecem funcionais até hoje.

Desde a década de 1990 existem projetos para a reconstrução da rodovia. Por outro lado, nenhum deles foi posto em prática. Para que haja pavimentação de toda a rodovia é necessário o licenciamento ambiental que, por uma série de questões técnicas pertinentes, apontadas pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), torna o projeto impraticável.

No entanto, como reforçou a então ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, em uma entrevista ao programa Bom Dia, Ministra em 2024, existe uma licença aprovada para a pavimentação de cerca de 200 quilômetros da via, desde 2007.

Para Marina, a grande preocupação fica por conta dos “quase 500 quilômetros, dentro de uma área que é altamente preservada, no coração da Amazônia. A abertura dessa estrada pode causar um impacto muito grande”, agravando os problemas existentes de desmatamento, queimadas e grilagem de terras. Além disso, reforçou que a recomendação do Ministério do Meio Ambiente é de que haja uma avaliação ambiental estratégica, para que qualquer decisão seja tomada com base em dados e evidências.

Progresso e sustentabilidade na Amazônia

O que dizem os ambientalistas

Segundo o ambientalista Caetano Scannavino, que atua com projetos socioambientais há mais de 30 anos na região amazônica, o progresso e o desenvolvimento são importantes. Mas a grande questão fica em torno da sustentabilidade dos projetos.

Durante uma entrevista, em 2024, Scannavino reforçou que melhorar a estrutura e oferecer serviços básicos para os habitantes das cidades amazônicas é absolutamente necessário. Por outro lado, a preocupação surge justamente na forma como isso é feito.

Scannavino explica que a crítica dos ambientalistas está ligada ao histórico de como obras e empreendimentos são conduzidos na região. Os projetos ocorrem de forma incompleta, sem levar em conta ações de governança, mitigação de danos, conservação ambiental, combate ao crime e à grilagem de terras.

O ciclo da grilagem em terras brasileiras está diretamente ligado ao desmatamento espinha de peixe.
O ciclo da grilagem em terras brasileiras | Imagem de Tom Bojarczuk e texto de Patrícia Kalil, sob CC BY-NC-SA 4.0 no Arvoreagua

Nesse sentido, um estudo realizado pelo Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), apontou os impactos que poderiam ser gerados pela pavimentação total da rodovia BR-319.

Impactos do desmatamento espinha de peixe

Segundo os pesquisadores, reconstruir uma rodovia no meio de uma das áreas mais preservadas da floresta amazônica poderia resultar em ocupações desordenadas e degradação ambiental, ampliando o que chamam de “arco do desmatamento”.

O avanço do arco do desmatamento

O arco do desmatamento é a região que concentra os maiores índices de degradação da floresta, impulsionados pela expansão da atividade agropecuária.

Essa faixa se estende do Pará ao Acre, passando por Mato Grosso e Rondônia, e abrange cerca de 500 mil km² de área desmatada. Forma um arco que pode avançar em direção ao norte do Amazonas e de Roraima, alcançando a fronteira com a Venezuela por meio da BR-174, que liga Manaus a Boa Vista.

Arco do desmatamento, em vermelho. É possível perceber, pelos diferentes tons de verde, enormes áreas desflorestadas, resultado do desmatamento espinha de peixe.
Arco do desmatamento, em vermelho. É possível perceber, pelos diferentes tons de verde, enormes áreas desflorestadas | Imagem editada por Bruna Chicano a partir do Google Earth, ©2021 Data SIO, NOAA, U.S. Navy, NGA, GEBCO, Landsat/Copernicus, INEGI, IBCAO, U.S. Geological Survey, PGC/NASA

De acordo com o estudo, apesar do papel estratégico das rodovias no desenvolvimento econômico de uma região, no caso da Amazônia esse tipo de construção promove a degradação ambiental.

Isso acontece, primeiro, porque é fácil migrar para regiões ainda preservadas. Depois, a atividade pecuária tende a se expandir, comprando dezenas de pequenas propriedades que são formadas com o tempo. Com isso, a população acaba sendo levada a buscar novos espaços, em áreas ainda mais distantes.

BR-163

Além disso, um exemplo sólido dessa realidade é a reconstrução da BR-163. A estrada vai de Santarém, no Pará, até Cuiabá, no Mato Grosso. O desmatamento espinha de peixe ao longo da rodovia aumentou exponencialmente após sua reconstrução e asfaltamento, mesmo existindo políticas, planos e programas para a redução dos danos ambientais, como explicam os pesquisadores.

O padrão de desmatamento espinha de peixe é um retrato visível da pressão humana e seu avanço desordenado sobre a Amazônia. Ao mesmo tempo em que o desenvolvimento e a infraestrutura são necessários, sem planejamento, fiscalização e políticas públicas eficazes, cada nova estrada se transforma em mais um vetor de degradação ambiental.