Como pequenos países em ilhas assumiram protagonismo na ONU
Representantes de nações insulares como Maldivas, Comores e Ilhas Marshall tomam a dianteira nos debates sobre o aquecimento global, que pode fazer ilhas inteiras submergirem num futuro próximo. Dependentes do turismo, governos também cobram distribuição igualitária de vacinas para retomada segura.
Países em pequenos arquipélagos espalhados pelos oceanos do mundo enfrentam um problema duplo: o risco de desaparecimento com o aumento no nível do mar e a queda no turismo — um motor na economia — devido à pandemia de Covid-19.
A dupla preocupação foi externada no discurso de autoridades de países insulares na Assembleia Geral das Nações Unidas, encerrada nesta semana. Os governos pediram comprometimento dos mais ricos com as metas de diminuir a emissão de carbono e com a distribuição igualitária de vacinas contra o coronavírus.
Esse pedido de atenção, inclusive, se traduziu na escolha de Abdulla Shahid para presidir a Assembleia da ONU. Ele é Ministro das Relações Exteriores de Maldivas, país no Oceano Índico que corre risco de sumir com o aumento do nível do mar e que tem no turismo uma de suas principais atividades econômicas.
Abdulla Shahid, presidente da Assembleia Geral da ONU de 2021, durante discurso em 22 de setembro. Ele é de Maldivas, um dos países em risco de desaparecimento caso se confirme o aumento no nível do mar com o aquecimento global — Foto: Justin Lane/Pool via Reuters
Nesta reportagem você vai ler que:
- Especialista da ONU em meio ambiente admite que inundações nesses países são ‘cada vez mais prováveis’.
- Possível desaparecimento abriria um limbo jurídico: o que fazer com o reconhecimento dos estados cujos territórios ficarão submersos? E como lidar com as populações deslocadas desses países?
- O Brasil tem papel importante na luta contra o desaparecimento dessas ilhas; queimadas e desmatamento são desafios.
- Dependentes em parte do turismo, países insulares entram na geopolítica da vacina, com pedido por distribuição igualitária
Aumento do nível do mar
Praia que compõe as Ilhas Marshall, país localizado no Oceano Pacífico que corre risco de desaparecimento caso nível do mar aumente — Foto: Reprodução
O risco para populações litorâneas é conhecido há décadas: com a maior temperatura média do planeta, o derretimento do gelo polar e do permafrost — ou seja, o solo permanentemente congelado nas regiões frias do globo — levaria ao aumento do nível do mar. Assim, cidades inteiras poderiam ser engolidas mesmo que os oceanos subissem poucos metros.
No caso do permafrost, a situação é ainda mais grave porque, ao todo, essa camada de solo contém quase 1,7 trilhão de toneladas de carbono — quase o dobro do dióxido de carbono presente na atmosfera. Ou seja, um ciclo vicioso de derretimento do gelo e de aumento na temperatura da Terra com a emissão de gases estufa.
Por isso, em entrevista na quinta-feira (30), o coordenador sênior do Programa de Meio Ambiente da ONU (UNEP), Niklas Hagelberg, reconheceu que os riscos para as populações nos pequenos arquipélagos estão aumentando.
“Já estamos olhando para algum aumento no nível do mar, com o derretimento do gelo polar e do permafrost mesmo se pararmos todas as emissões. Então, um cenário de inundações é algo cada vez mais provável”, alertou.
Isso afetaria, segundo ele, não só países como Tuvalu, Ilhas Marshall, Maldivas ou Kiribati, mas populações inteiras de áreas continentais baixas como as margens dos rios em Bangladesh, no sul da Ásia.
A diferença é que existe uma preocupação com as nações insulares porque, caso o nível do mar aumente, todo o território de países inteiros ficaria submerso. Ou seja, a população de um país inteiro — ainda que pequena — teria que ser deslocada a outras nações, causando uma questão migratória.
Em consequência disso, haveria uma questão inédita: ainda não há uma resposta definida sobre como lidar juridicamente com cidadãos de um país que deixou de existir em decorrência de uma catástrofe natural, e não de uma guerra.
Assim, a ONU abriga desde a conferência de meio ambiente no Rio de Janeiro em 1992 o grupo de Pequenos Estados Insulares em Desenvolvimento (SIDS, na sigla em inglês), com 38 países integrantes e outros 20 associados. Cerca de 65 milhões de habitantes — quase 1% da população mundial — vivem nessas ilhas e, portanto, podem ser gravemente afetadas com o aumento no nível do mar.
Os integrantes do SIDS, então, debatem com frequência formas de pressionar países mais ricos e desenvolvidos para que cumpram com as metas climáticas, além de discutir soluções conjuntas para o problema do aumento do nível do mar e outras catástrofes associadas ao clima.
Vacinas e turismo
Pequenas ilhas como as Maldivas são extremamente dependentes do turismo e sofrem com o impacto das emissões de carbono — Foto: Bodensee/Schweiz/Pixabay
Os pequenos países insulares têm na maioria das vezes o turismo como principal fonte de renda. Pacotes de viagens para paraísos tropicais como as Maldivas são bastante procurados, por exemplo, para visitas que vão de luas de mel a eventos de negócios.
Com a pandemia da Covid-19, o setor parou — e, ao voltar, a retomada tem sido lenta, com idas e vindas, exigências de testes e outros protocolos.
É por isso que, além de pedirem comprometimento com a meta de limitar as emissões de carbono para que o aumento na temperatura global não ultrapasse 1,5°C, os líderes desses países pediram na assembleia uma distribuição igualitária de vacinas.
As Maldivas, por exemplo, conseguiram avançar bem na vacinação, com mais de 60% das pessoas já completamente imunizadas segundo o levantamento do Our World In Data, que compila dados do mundo inteiro com a Universidade de Oxford.
Doses da vacina Pfizer/BioNTech — Foto: Divulgação
Essa não é, porém, a realidade em todos os pequenos países insulares: em Comores, por exemplo, a taxa de pessoas vacinadas contra a Covid com a primeira dose mal alcançou 20% — o presidente desse país disse esperar que só no fim de 2022 chegará a 80% da população vacinável imunizada.
“A Covid-19 vai continuar enquanto não for derrotada no mundo inteiro. A chave está nas vacinas, e vacinar o mundo o mais rápido possível é o jeito de superarmos a pandemia. Assim, a igualdade na distribuição das vacinas é de uma importância primordial”, disse Ibrahim Mohamed Solih, presidente das Maldivas, em discurso em 21 de setembro.
O papel do Brasil
Foto mostra incêndio no Cerrado em Brasília no dia 21 de setembro. — Foto: Eraldo Peres/AP
As atenções se voltam ao Brasil quando as mudanças climáticas entram em pauta, sobretudo em um contexto de forte pressão para reduzir o desmatamento na Amazônia — que ainda está em níveis preocupantes — e com as recentes queimadas no Cerrado e no Pantanal.
Afinal, a enorme cobertura vegetal brasileira ajuda a equilibrar a quantidade de CO2 na atmosfera, e o Brasil vem recebendo pressão internacional para se comprometer com as metas de preservação e redução dos gases estufa previstas no Acordo de Paris — o que, entre outras coisas, impacta na segurança dos pequenos países insulares.
A próxima rodada de conversas sobre o clima está marcada para novembro, em Glasgow, na Escócia, na reunião da COP 26. Os países discutirão formas de frear o aumento da temperatura global para patamares inferiores a 2°C, o que ainda assim é pouco para evitar o aumento do nível do mar.
Em entrevista à rádio pública francesa RFI, a secretária de Amazônia do Ministério do Meio Ambiente, Marta Giannichi, adiantou que o Brasil não vai evitar conversas sobre o desmatamento e que pretende sair da reunião em Glasgow com “algo concreto” em relação às metas brasileiras.
Representantes da ONU, entretanto, reconhecem a dificuldade em traçar metas: cada país tem interesses e realidades muito singulares, que dificultam um entendimento e um consenso em relação ao que pode ou não ser feito para reduzir o impacto das mudanças climáticas.
“O Brasil tem suas próprias visões e circunstâncias, e eu não tenho como dizer qual o problema de cada país: todos têm questões singulares e visões especiais nas mesas de negociação”, ponderou Niklas Hagelberg, do UNEP.
Vacinas da Fiocruz contra a Covid — Foto: Bernardo Portella/Fiocruz
Em relação à distribuição de vacinas contra a Covid, o Brasil ainda pode adotar um papel central porque o país avançou no ritmo de imunização dos brasileiros e deve se aproximar da cobertura vacinal completa até o fim do ano.
Assim, considerando a autonomia do Instituto Butantan e da Fiocruz na produção dos imunizantes da Coronavac e Oxford/AstraZeneca, além da recente parceria da Pfizer/BioNTech com a farmacêutica Eurofarma, o Brasil deverá aumentar sua parcela na produção de vacinas para outros países — diminuindo o gargalo da distribuição de doses nos países mais pobres.
O desafio, sinalizado inclusive dentro da ONU, será conciliar a demanda por doses de reforço em algumas populações como os mais idosos e imunossuprimidos com a necessidade de ampliar a vacinação pelo mundo antes que apareça uma nova variante que escape ainda mais das vacinas.