Como o homem que plantou uma floresta no bairro pode inspirar você?

Em duas décadas, Hélio da Silva plantou mais de 42 mil árvores às margens do Córrego Tiquatira, em São Paulo. Entenda como o que começou como um ato solitário virou uma floresta urbana – e exemplo de persistência.
Olhando de cima, a diferença salta aos olhos. Onde antes se via uma faixa cinza cortando o tradicional bairro da Penha, na Zona Leste de São Paulo, hoje há um corredor verde.
Em duas décadas, a paisagem ao longo do Córrego Tiquatira foi radicalmente transformada: do mato ralo e do lixo acumulado, nasceu uma floresta urbana.
O Parque Linear Tiquatira, com mais de três quilômetros de extensão, é hoje uma das maiores áreas verdes contínuas em meio ao concreto da capital.
A mudança, porém, não foi obra do poder público nem resultado de um grande projeto ambiental. Ela começou com a decisão individual de um morador.
“Eu vi essa degradação se acentuando”, lembra o aposentado Hélio da Silva, de 74 anos, morador da região há mais de seis décadas
“Num dia, em novembro de 2003, eu comentei com a minha esposa e com meus filhos que iria mudar tudo isso aqui em dez anos.”
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Hélio da Silva, morador da região há mais de 6 décadas plantou sozinho as árvores do Tiquatira. — Foto: Fábio Tito/g1
A ideia, conta, foi recebida com espanto. “Eles ficaram preocupados, porque aqui era perigoso, cheio de assaltos. Me desestimularam”, diz. “Mas quando todo mundo me desestimulou, foi aí que decidi: agora é que eu vou pra frente.”
Foi o início de um trabalho silencioso que atravessou o tempo e o concreto.
🌱 ENTENDA: A Lei Municipal nº 17.794/2022 permite o plantio de árvores em áreas públicas sem autorização prévia em São Paulo, mas exige comunicação à prefeitura e respeito ao Plano Municipal de Arborização Urbana. Em áreas particulares, o plantio é livre.
Aos fins de semana, Hélio saía de casa com adubo, mudas e uma enxada. Plantava uma, duas, dez árvores, voltava dias depois para regar e anotar tudo num fichário.
Até hoje, mantém um registro detalhado: local, data e espécie de cada uma das mais de 42 mil árvores plantadas ao longo do córrego.
Antes da urbanização, o Tiquatira era um curso d’água sinuoso, mas sem muitas árvores ao redor.
“Há 40 anos, o córrego era limpinho e serpenteado”, conta Hélio. “Tinha rã, tinha preá, tinha algumas caças aqui. Depois o homem veio e domou o rio.”
O “domar” de que ele fala foi a canalização, o processo que transformou o leito natural em um canal de concreto poluído, como tantos outros córregos paulistanos.
Logo, na década de 80, o espaço em volta virou avenida, e o verde desapareceu.
Em 2003, Hélio começou, então, a devolver à margem parte do que a cidade havia tomado.
Com o tempo, a paisagem mudou: as árvores cresceram, a sombra voltou, e com ela vieram pássaros, insetos e até pequenos mamíferos.
“O bonito é ver elas crescerem”, diz, sorrindo, ao caminhar entre as copas que agora se tocam sobre o córrego.
“Hoje é um refúgio, um lugar de paz. Antes, era medo e abandono.”
Um parque feito à mão
Nos primeiros anos, Hélio conta que o desafio era diário. As primeiras 200 mudas que plantou foram destruídas.
Depois vieram 400, que também foram arrancadas. “Aí eu disse: agora eu vou plantar cinco mil”.
E a persistência virou rotina. Aos poucos, a floresta cresceu. Hoje, as margens do Tiquatira abrigam 164 espécies da Mata Atlântica, entre elas ipê, jatobá, araribá, pau-brasil e araucária
Cerca de 3 mil são frutíferas, como jabuticaba, goiaba, cereja-do-rio-grande e bacupari.
O espaço também se tornou ponto de observação de aves: grupos de birdwatching já registraram ali 69 espécies diferentes, incluindo tucanos, pica-paus, sanhaços, sabiás e bem-te-vis.
Segundo Hélio, a biodiversidade é tanta que a diferença de temperatura entre o parque e as ruas próximas chega a cerca de cinco graus.
A reportagem visitou o local em um dia de forte calor na capital e sentiu essa diferença na pele: enquanto o asfalto da Avenida Governador Carvalho Pinto refletia o sol escaldante, bastava entrar entre as árvores do Tiquatira para o ar ficar mais fresco e úmido.
Ele afirma ainda que, nas chuvas, as árvores ajudam a conter alagamentos, retendo parte da água da enxurrada.
Casca deixada por uma cigarra presa ao tronco de uma árvore no Parque Tiquatira. — Foto: Fábio Tito/g1
Fora isso, com o tempo, o entorno também mudou. A antiga área ociosa e insegura virou ponto de encontro: hoje há famílias fazendo piqueniques diariamente, escolas promovendo atividades ambientais e moradores caminhando entre as árvores plantadas por ele.
Na Penha, o trabalho de Hélio virou inspiração, e também um convite à ação coletiva.
“Eu acho importante, mas é bom também que outras pessoas façam. Ele não pode ficar sozinho nessa. A gente precisa ajudar, porque o que ele está fazendo é pra todo mundo”, diz Jaciana Ambrósio, 41 anos, que leva o cachorro para passear no parque durante a semana.
Em 2023, a Fundação SOS Mata Atlântica informou que o trabalho do “Seu Hélio”, como o plantador de árvores da Penha é carinhosamente chamado, inspirou a criação de cerca de 300 grupos de plantadores de árvores em diferentes regiões do Brasil — do Norte ao Sul do país.
Hoje, além de seguir plantando, ele também participa de palestras em escolas e eventos ambientais, onde fala sobre a importância de cuidar da natureza e envolver as novas gerações.
E mesmo aos 74 anos, o ritmo continua. Nos períodos de chuva, Hélio chega a plantar até 60 mudas por dia.
A maioria é comprada com recursos próprios em viveiros do interior paulista, onde o preço é bem mais baixo do que na capital.
Mais do que uma rotina, o plantio se tornou parte da vida dele — e a meta continua: chegar a 50 mil árvores no Tiquatira.
“Plante uma árvore, conviva com ela, converse com ela de vez em quando, e ela vai se tornar sua melhor amiga e confidente. Plante uma árvore. Isso é amor”, celebra Hélio.
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Córrego Tiquatira, que banha o parque de mesmo nome na zona leste de São Paulo. — Foto: Fábio Tito/g1