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Como o Brasil se transformou em um país de pessoas gordas

Como o Brasil se transformou em um país de pessoas gordas

Nos últimos 50 anos, os hábitos alimentares do brasileiro mudaram radicalmente. Pode parecer coisa de outro mundo, mas muitos dos nossos pais e avós se lembram de um tempo em que as casas não tinham sequer geladeira – em 1981, segundo o IBGE, apenas 56,61% da população tinha um refrigerador.

A popularização do eletrodoméstico fez com que a rotina se transformasse: com a possibilidade de guardar comida, não era mais necessário cozinhar todo dia e o cardápio, que antes era composto principalmente de alimentos frescos, passou a incorporar opções congeladas e que permaneciam guardadas por dias no refrigerador.

Em 1964, de acordo com a Organização de Comida e Agricultura das Nações Unidas (FAO/ONU), a população da América Latina e Caribe consumia cerca de 2.393 calorias por dia. Em 2015, o número saltou para 2.980: a diferença de quase 600 calorias é equivalente a um PF de arroz, feijão, carne e salada. É como se almoçássemos duas vezes. A expectativa é que, em 2030, estejamos consumindo 3.140 calorias por dia, em média.

A mudança de hábitos alimentares impactou, principalmente, os números da balança. Entre 2006 e 2019, o percentual de obesos na população brasileira passou de 11,8% para 20,3%. De acordo com um estudo publicado na revista Scientific Reports, do grupo Nature, em 2030, cerca de 70% dos brasileiros estarão com excesso de peso – grupo que inclui as pessoas obesas e as com sobrepeso.

“Os achados indicam um aumento sustentado da epidemia de obesidade em todos os subgrupos sociodemográficos e em todo o país. A obesidade pode atingir três em cada 10 adultos até 2030”, apontam os autores do trabalho liderado pelo professor José Matheus Estivaleti, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

Em uma série de reportagens, o Metrópoles vai mostrar por que o Brasil está se tornando um país obeso, como isso impacta a saúde das pessoas e quais os custos individuais e coletivos da obesidade. Também abordará as políticas públicas existentes para lidar com o problema e o que ainda é necessário implementar para garantir um ambiente de escolhas alimentares mais saudáveis.

Os textos estão embasados nas mais recentes pesquisas e descobertas científicas sobre a relação entre o excesso de peso e os males de saúde, os prejuízos causados pelo consumo de ultraprocessados e a capacidade desse tipo de alimento desencadear compulsões alimentares. A reportagem é apoiada em entrevistas com pesquisadores, especialistas, representantes de associações médicas e de pacientes.

Balança mais pesada

De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), a obesidade é definida como um quadro no qual há excesso de gordura corporal suficiente para causar prejuízos à saúde. Convencionalmente, é considerada obesa a pessoa com índice de massa corporal (IMC) igual ou acima de 30.

A condição é considerada uma doença pela entidade desde 1997, quando foi publicado um documento caracterizando a obesidade como “complexa”, “não completamente compreendida”, “séria” e “crônica”.

Desde o início dos anos 2000, a OMS vem alertando para o ganho de peso da população mundial e suas graves consequências para a saúde pública. Em 2016, o fenômeno já tinha proporções epidêmicas: a organização relatou que o percentual de pessoas obesas havia triplicado em 40 anos e já era a realidade de 650 milhões de indivíduos. Naquele ano, a redução pela metade da curva de crescimento da obesidade foi estabelecida como meta a ser atingida até 2025.

Dados do Atlas Mundial da Obesidade, divulgados em 2022, antecipam que o objetivo não será alcançado. Hoje, a tendência mundial continua sendo as populações engordarem. No retrato mundial sobre o problema, o Brasil aparece ao lado de Estados Unidos, China e Índia, como um dos países com maior número de pessoas obesas no mundo. Se o indicador for o percentual do grupo de obesos na população, o Brasil estará mais parecido na foto com os EUA do que com a Índia e a China.

A obesidade é considerada uma doença crônica e multifatorial – ou seja, não tem cura e tem várias causas. O paciente pode emagrecer, mas precisará controlar os ponteiros da balança durante toda a vida. Além da pressão social por um corpo magro e esbelto, a pessoa obesa precisa lidar com o aumento do risco de doenças cardíacas, diabetes, pressão alta, problemas no fígado e nos rins e diversos tipos de câncer, como de cólon, reto e mama.

O sobrepeso – uma condição anterior à obesidade, mas também considerada não saudável – também cresce entre os brasileiros. De acordo com a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS, 2020), 6 em cada 10 adultos estão com o peso acima do desejável.

A pesquisadora Renata Bertazzi Levy, professora da Universidade de São Paulo (USP) e integrante do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (Nupens), alerta: “O assunto não é sobre estética, é sobre saúde. Os padrões de obesidade e sobrepeso foram estipulados pela Organização Mundial da Saúde, não são uma criação da indústria da moda”.

Dieta de pior qualidade

Mas o que levou os brasileiros a engordarem tanto? A resposta para o fenômeno não é única, tampouco está restrita ao cenário nacional. Há um conjunto de causas relacionadas à maneira como vivemos, trabalhamos, nos divertimos, locomovemos e, principalmente, comemos.

As mudanças de estilo de vida, ao longo do tempo, levaram a um contexto mundial em que ingerimos muito mais calorias do que gastamos. Basta pensar nas suas escolhas para um sábado à noite – ouvi pizza e Netflix?

O grupo liderado por Renata usou informações sobre o consumo familiar coletadas pelo IBGE ao longo das últimas quatro décadas para analisar as mudanças na alimentação dos brasileiros. A conclusão é que nossa dieta vem piorando. “Os alimentos in natura estão perdendo espaço para os ultraprocessados e essa tendência é ainda mais forte entre as pessoas mais jovens e as com menos recursos financeiros”, aponta a pesquisadora.

Embutidos, biscoitos, refrigerantes e refeições prontas ganharam o lugar de arroz, feijão, carne, frutas e legumes. De acordo com a pesquisadora Renata, hoje, 23,7% da dieta dos brasileiros é composta por alimentos ultraprocessados. Há 30 anos, esse percentual era de 10%.

O endocrinologista Bruno Halpern, presidente da Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica (Abeso), conta que, nos anos 1970, aconteceu uma grande revolução na indústria, aumentando a capacidade de produção e processamento de alimentos. A mudança fez com que a quantidade total de calorias disponíveis para a população crescesse de forma exponencial.

“Em um primeiro momento, foi algo crucial para reduzir o número de pessoas que passavam fome, como aconteceu no Brasil, por exemplo. Mas essa inundação de calorias, principalmente as de baixa qualidade, acabou levando ao aumento de peso”, pondera.

Além disso, nesse mesmo período, as exigências do mundo do trabalho cresceram, e o brasileiro abandonou o hábito de ir para a cozinha todos os dias preparar sua refeição. “A nossa comida é feita no fogão, envolve várias panelas ao mesmo tempo. A maioria das pessoas simplesmente não tem mais tempo para isso”, diz Halpern.

Cadê o arroz com feijão?

Uma pesquisa feita pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) publicada em fevereiro deste ano comprova a mudança da nossa tradição alimentar. O estudo analisou dados de mais de 500 mil adultos acompanhados entre os anos de 2009 e 2019 pela pesquisa Vigitel e descobriu que, em 2025, o brasileiro deve deixar de comer feijão de forma regular e tradicional.

O levantamento descobriu ainda que, durante o período analisado, quem não comeu feijão teve 10% mais chance de desenvolver excesso de peso e 20% de ter obesidade. Em contrapartida, quem consome o alimento regularmente, em cinco ou mais dias da semana, foi protegido do excesso de peso (14% menos risco) e da obesidade (15% menos risco).

Os alimentos ultraprocessados são frequentemente ricos em sódio, gordura e açúcar e pobres em nutrientes. “Eles imitam alimentos naturais usando substâncias químicas. Além do aporte calórico alto, há conservantes, espessantes e corantes, que afetam negativamente o metabolismo humano”, aponta o pesquisador Eduardo Nilson, do Observatório Brasileiro de Hábitos Alimentares (OBHA), da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).

Nilson lidera uma pesquisa recente publicada na American Journal of Preventive Medicine que estima o número de mortes no Brasil associadas ao consumo de alimentos de baixa qualidade. Os cálculos do grupo mostram que, aproximadamente, 57 mil mortes prematuras ocorrem por ano no país devido a ingestão de ultraprocessados. “A associação entre os ultraprocessados e uma série de doenças já está consolidada, especialmente as doenças cardiovasculares, a obesidade, o diabetes e a pressão alta”, afirma o pesquisador.

Sedentarismo crônico

Nos últimos anos, o brasileiro (e o mundo inteiro, a bem da verdade) também se tornou mais sedentário. Se no passado era obrigatório levantar para trocar o canal da televisão e correr quando o telefone fixo tocava, hoje tudo pode ser feito na palma da mão com controles remotos e smartphones. Se antes era necessário subir vários andares de escada, agora, todos os níveis dos prédios são conectados por elevadores – é, literalmente, só apertar um botão.

“Tudo isso diminui o gasto metabólico. Hoje temos muitas academias e vários esportes, mas, se você for colocar na ponta do lápis, a porção da população que malha com regularidade é um nicho de mercado”, explica Halpern, da Abeso. Além disso, ele aponta que, em um cenário mundial, a obesidade vem crescendo principalmente entre as populações de baixa renda. E esse público não tem tempo nem verba para frequentar academia.

O endocrinologista Fábio Moura, diretor da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (Sbem), conta que outro problema é o chamado tempo sedentário. “Hoje, não basta ser fisicamente ativo, fazer atividade três vezes por semana por 50 minutos. Se você passa mais de três horas por dia sentado, anula os exercícios. Mais de oito horas, é uma catástrofe para o organismo. Conhece alguém que faz isso? Apenas todo mundo”, alerta o médico.

Ele lembra ainda que a migração da população para os centros urbanos e a piora da segurança, além de cidades cada vez mais hostis para o pedestre, fazem com que as pessoas evitem caminhar para o trabalho ou ir de bicicleta para a escola. Optamos cada vez mais pelo carro ou transporte público, diminuindo a quantidade de calorias gastas nos deslocamentos.

“Ambiente obesogênico”

Um julgamento tão comum quanto leviano sobre as pessoas obesas ou acima do peso é que elas não têm força de vontade suficiente para emagrecer. Quando se trata de um problema de saúde pública, os especialistas preferem falar em determinantes ambientais a escolhas individuais.

“Os hábitos alimentares mudaram por conta de um arranjo bastante complexo. Não é, necessariamente, que as pessoas prefiram opções de baixa qualidade. Muitas vezes, essa é a única comida acessível”, explica Nilson, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).

Os pesquisadores têm usado o termo “ambiente obesogênico” para se referirem ao contexto que direciona as pessoas para escolhas menos saudáveis e que levam ao ganho de peso. Ele destaca, como exemplo, os “desertos alimentares” – locais onde, simplesmente, não há opções de comida saudável à venda – como é o caso de várias periferias brasileiras.

Outro fator determinante é o preço da comida. Nos Estados Unidos e no Reino Unido, os industrializados custam bem menos do que os gêneros frescos – isso resulta numa maior adesão das populações locais aos ultraprocessados e, consequentemente, maior proporção de pessoas obesas na população. No Brasil, a realidade, por enquanto, é inversa: os produtos in natura são mais baratos.

Um estudo publicado na revista de Nutrição e Saúde Pública, da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, prevê que, em 2026, no Brasil, os alimentos ultraprocessados ​​se tornarão mais baratos do que os saudáveis. “O valor dos industrializados está caindo e o dos alimentos naturais aumentando, isso vai alterar ainda mais o padrão alimentar dos brasileiros”, alerta a professora Renata, da USP, que também participou desse trabalho de pesquisa.

O diretor da Sbem, Fábio Moura, acrescenta um outro ingrediente preocupante ao cenário: os hábitos de sono. “Além de tudo, o indivíduo dorme menos, troca o dia pela noite, inverte o ciclo circadiano e altera todos os hormônios, lida com estímulos o dia todo, vive com estresse físico e emocional. É uma tempestade perfeita, e o resultado são os números estratosféricos de pessoas com sobrepeso e obesidade”, afirma o diretor da Sbem.

Na próxima reportagem, saiba por que a obesidade provoca mortes prematuras, como o excesso de peso impacta nos custos de saúde e a dificuldade de encontrar tratamento adequado gratuito.