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Como aumentar a produção de alimentos sem prejudicar a natureza e a saúde?

Como aumentar a produção de alimentos sem prejudicar a natureza e a saúde?

Com base nas discussões da Cúpula de Sistemas Alimentares da ONU, especialista da TNC Brasil analisa as alternativas a sistema alimentares inovadores e, sobretudo, sustentáveis

No último dia 23 de setembro, foi realizada em Nova York a Cúpula de Sistemas Alimentares da ONU, cuja meta é discutir soluções para o alcance da fome zero até 2030 e a adoção de dietas saudáveis ​​dentro de um sistema alimentar sustentável. Agravados pela pandemia, a escassez de alimentos e o acesso desigualitário a eles não são apenas um problema atual, mas também uma ameaça futura, já que a produção de alimentos precisa aumentar em cerca de 70% em relação à produção de 2012 para atender à demanda em 2050, quando a população mundial será de aproximadamente 10 bilhões de pessoas.

A pressão por mais alimentos devido ao crescimento populacional e aos atuais hábitos de consumo apresenta um custo ambiental. A resposta imediata a essa pressão é o aumento da produção geralmente associado à expansão de terras agrícolas e pastagens. Em países onde a legislação ambiental, mesmo quando existente, não é reforçada, e com sistema de assistência técnica rural insuficiente, a solução mais simplista acaba sendo a conversão acelerada da vegetação nativa, como a que vem ocorrendo na Amazônia e no Cerrado nas últimas décadas. Assim, juntamente com a ocupação de terras públicas e outras atividades ilegais, a produção de alimentos acaba sendo um fator adicional à perda de nossas florestas e savanas.

E com o desmatamento, outros problemas são desencadeados, impactando diretamente populações tradicionais, biodiversidade, fluxos hídricos, clima, outros serviços oferecidos pelos ecossistemas — e, inclusive, a própria produção agrícola ou de carne. Além disso, nesse modelo usual e insustentável de produção extensiva, a falta de adoção de boas práticas agrícolas e de manutenção do solo acaba levando a esgotamento da fertilidade, compactação e erosão, resultando em solos degradados e com baixa produtividade ou mesmo improdutivos.

De acordo com a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), 33% dos solos da Terra já estão degradados, uma proporção que pode aumentar para 90% até 2050. No Brasil, 119 milhões de hectares de pasto — uma área que corresponde a 14% do território nacional — apresentam um grau intermediário ou alto de degradação, segundo dados do Laboratório de Processamento de Imagens e Geoprocessamento (Lapig) da Universidade Federal de Goiás.

E uma parcela importante dessa área encontra-se abandonada. Para se ter uma dimensão do problema, a área de pasto degradada é cerca de 80% maior que a área agrícola brasileira atual, que ocupa 66,4 milhões de hectares, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Com investimentos e técnicas ambientalmente adequadas, essas terras, ou ao menos parte delas, representam uma alternativa real de expansão da produção de alimentos.

Outra saída é a intensificação da produção agrícola e da pecuária para produzir mais alimentos em menos terra. No entanto, quando realizada fora de padrões de sustentabilidade, a intensificação também apresenta riscos, sobretudo aqueles associados ao aumento do uso de fertilizantes inorgânicos, pesticidas e herbicidas, à pressão sobre os recursos hídricos advinda de sistemas de irrigação e à redução da diversidade biológica.

Embora o foco maior da questão de segurança alimentar esteja na quantidade de alimentos, é preciso considerar também a qualidade das dietas. Uma revisão da literatura científica conduzida pelo Grupo Científico da Cúpula do Sistema Alimentar das Nações Unidas 2021 (ScGroup), que reuniu cientistas de vários países, indicou que o consumo médio de frutas e vegetais pela população mundial é 33% inferior à quantidade de ingestão diária recomendada pela Organização Mundial da Saúde (400 g/dia). Inclusive, esse é um dos cinco principais fatores de risco para problemas de saúde. São estimadas mais de 2 milhões de mortes atribuíveis à baixa ingestão de frutas e 1,5 milhão de óbitos relacionados ao consumo insuficiente de vegetais em todo o mundo a cada ano, particularmente em países de baixa e média renda.

Nesse contexto, é paradoxal que cerca de 200 mil espécies de plantas comestíveis, muitas das quais crescem perto de habitações humanas, permaneçam praticamente inexploradas. É também paradoxal que na Amazônia, a região do planeta com maior potencial de contribuição para a extração dessas espécies comestíveis, o valor do hectare de terra com floresta em pé seja inferior ao da terra com pastagem ou com aptidão agrícola, mesmo que essa aptidão seja restrita, segundo mostra a Receita Federal para o estado do Pará.

Especialistas analisaram modelos climáticos sobre a Amazônia para estimar qual será o impacto das secas (Foto: Jessica Baker/Universidade de Leeds)
Amazônia é a região do planeta com maior potencial de contribuição para a extração de plantas comestíveis (Foto: Jessica Baker/Universidade de Leeds)

Claramente é necessária uma transformação da produção de alimentos, associada a novas políticas, incentivos e mercados, para que a população mundial chegue em 2050 com uma dieta adequada e saudável não apenas do ponto de vista humano, mas também dos demais seres vivos e do ambiente, a partir de sistemas produtivos ecologicamente sustentáveis. O ScGroup identificou sete ações que devem ser buscadas de maneira integrada e com base científica para uma transformação bem-sucedida dos sistemas alimentares. São elas:

1. Inovações para acabar com a fome e aumentar a disponibilidade e acessibilidade a dietas saudáveis e alimentos nutritivos;

2. Medidas para reduzir o risco e fortalecer a resiliência dos sistemas alimentares, em particular da agricultura de emissões de carbono negativas, numa combinação de conhecimentos científicos e tradicionais;

3. Superar acordos ineficientes e injustos de uso da terra, crédito, mão de obra e recursos naturais. Para facilitar a inclusão, incentivar o empoderamento e os direitos de mulheres, jovens e povos indígenas.

4. Promover biociência e inovações digitais relacionadas a saúde, produtividade dos sistemas e bem-estar ecológico;

5. Manter e, quando necessário, regenerar solos produtivos, terra e água; e proteger a base genética agrícola e a biodiversidade;

6. Estimular a pesca sustentável, alimentos aquáticos e proteção de áreas costeiras e oceanos;

7. Inovações de engenharia e digitais para eficiência e inclusão de sistemas alimentares e empoderamento de jovens e comunidades rurais.

A produção de carne em muitos casos também precisa ser revista e remodelada, de forma a seguir padrões ecológicos e éticos aceitáveis, e que respeitem o bem-estar animal. Para que essa mudança de paradigma nos sistemas alimentares ocorra, é essencial um entendimento aprofundado da diversidade de alimentos que a natureza oferece, numa junção do conhecimento de povos indígenas e comunidades tradicionais com a ciência, além da participação das comunidades rurais.

Sobretudo, é preciso romper desigualdades e garantir a todos o acesso a dietas saudáveis, possibilitando, assim, a escolha individual em prol de uma alimentação equilibrada e de menor pegada ambiental.

*Edenise Garcia é diretora de ciências na The Nature Conservancy (TNC) Brasil. Saiba mais em www.tnc.org.br