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Como a fuligem das queimadas da África impacta o clima da Amazônia no Brasil

Como a fuligem das queimadas da África impacta o clima da Amazônia no Brasil

Poluição transportada da África corresponde a um percentual significativo do total da poluição medida no bioma: em média, 30% das partículas do tipo “black carbon” na estação seca, e 60% na chuvosa

Já se sabia há mais de uma década que nenhum bioma, por mais distante que esteja de outro, está isolado e fechado em si mesmo. A Amazônia e o deserto do Saara, separados por mais de 6.000 km um do outro, por exemplo, têm uma interação que pode ser surpreendente para muitas pessoas. O desenvolvimento e as chuvas da floresta dependem em grande parte das partículas e nutrientes trazidos do deserto pelos ventos. Mas também há o lado ruim. Recentemente um grupo de pesquisadores do Brasil e da Alemanha descobriu que a fuligem das queimadas da África chega igualmente à Amazônia, reforçando as mudanças climáticas e prejudicando o regime de chuvas.

Estudos anteriores mostraram que parte das partículas de aerossóis (poeira em suspensão) que alimentam o intenso ciclo hidrológico da Amazônia vêm do Saara. Os principais são os chamados núcleos de condensação de gelo, que têm como um dos principais contribuintes a poeira do solo, e, no caso da floresta amazônica, proveniente do maior deserto do mundo.

Não são apenas simples grãos de poeira, no entanto, que o Saara manda para a Amazônia. Em 2015, um estudo da NASA, a agência espacial americana, revelou que todos os anos, o deserto envia 182 milhões de toneladas de poeira – mais ou menos o equivalente a 690 mil de caminhões de areia, que saem do Saara para as Américas do Sul e Central. Desse total, cerca de 28 milhões de toneladas – ou 105 mil caminhões – chegam na Bacia Amazônica.

Junto com o pó, caem no bioma 22 mil toneladas de fósforo, um nutriente – o mesmo encontrado em fertilizantes comerciais – essencial para o crescimento da floresta. É quase um volume equivalente ao que ela própria produz, com a decomposição das árvores caídas e, em seguida, perde, com as chuvas e inundações.

Segundo a física brasileira Bruna Holanda, do Instituto de Química Max Planck de Mainz, na Alemanha, líder do trabalho recente sobre o transporte de fuligem da África para a Amazônia, há muito tempo o transporte de poeira do Saara e da queima de biomassa daquele continente para a América do Sul é objeto de pesquisa visando entender qual o impacto que essas partículas têm sobre o clima amazônico. “Apesar de se saber que esse transporte existe, não se conhecia ao certo quanto da fumaça medida na Amazônia era proveniente da África”, explica. “Isso porque não se sabia como diferenciar a fumaça de longa distância daquela emitida localmente.”

Holanda conta que a pesquisa foi realizada durante nove anos, período em que foram desenvolvidos modelos computacionais inéditos. Também foi colhido material pela aeronave High Altitude and Long Range Research Aircraft (Halo), do Centro Aeroespacial Alemão (DLR), em voos realizados em diferentes pontos do Atlântico, da Amazônia e da divisa com o continente africano em setembro de 2014, entre agosto e setembro de 2018 e entre dezembro de 2022 e janeiro de 2023. Além disso, foram obtidas medidas no Observatório de Torre Alta da Amazônia (ATTO).

De acordo com a pesquisadora as partículas foram coletadas e analisadas com um fotômetro de fuligem, que mede a concentração e o tamanho delas em tempo real. “Esse foi um instrumento chave para o nosso estudo, mas contamos ainda com uma ampla variedade de outros equipamentos, tanto a bordo da aeronave Halo quanto na torre ATTO, que foram usados no estudo”, conta Holanda. Estes instrumentos possibilitam medir diferentes propriedades físicas e químicas dos aerossóis.

A partir das medidas com o avião Halo feitas diretamente sobre as plumas de poluição, os pesquisadores perceberam que há uma diferença no tamanho das partículas de fuligem que atravessam o Atlântico. Elas são geralmente maiores das que são emitidas localmente. “A partir disso, tivemos a ideia de usar esse parâmetro para distinguir a origem das partículas que medimos na ATTO ao longo de dois anos”, revela Holanda.

“Nós ficamos surpresos com a grande quantidade de fuligem com que a África contribui para a atmosfera amazônica”
— Bruna Holanda, do Instituto de Química Max Planck de Mainz, na Alemanha.

Segundo ela, as concentrações são comparáveis ao que é emitido localmente por desmatamento, apesar dos milhares de quilômetros separando os dois continentes. A poluição transportada da África corresponde a um percentual significativo do total da poluição medida no bioma: em média 30% na estação seca, e 60% na chuvosa.

Em outras palavras, os resultados mostraram que 60% das partículas do tipo black carbon (que são provenientes majoritariamente dos processos de queimadas) durante a estação chuvosa eram provenientes da África. “E além disso, nós observamos que 30% das partículas de queimada durante a estação seca, que é quando temos muito mais queimada na floresta amazônica, na Amazônia central são devido às queimadas na África subsaariana”, espanta-se o físico Marco Aurélio de Menezes Franco, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da Universidade de São Paulo, que também participou do estudo. “Isto é impressionante.”

Ele lembra que, durante a estação de queimada na Amazônia, há inúmeros focos de incêndios, os quais emitem “uma quantidade massiva, gigante”, de aerossóis de queimadas. “E ainda assim, aproximadamente um terço de todos eles medidos na atmosfera da Amazônia central vêm da África”, ressalta.

De acordo com Franco, esse transporte de matéria entre os dois continentes é conhecido há bastante tempo e ocorre justamente devido à direção que as massas de ar provenientes da Zona de Convergência Intertropical (ITCZ, na sigla em inglês) apontam. Durante o período chuvoso na Amazônia, cujo pico ocorre entre janeiro e maio, há a incidência do transporte de material particulado (aerossol atmosférico) majoritariamente proveniente da região do deserto do Saara.

Este aerossol é rico em minerais, em especial da componente de sulfato, que age literalmente alimentando a floresta, possibilitando com que ela exista. “Nossa pesquisa mostrou também a chegada gases de efeito estufa e aerossóis atmosféricos provenientes de queimadas na África subsaariana não só durante a estação chuvosa, mas também durante a de seca (julho a novembro, mais ou menos)”, diz. “Especificamente, fogos na região da floresta tropical do Congo seriam as principais fontes.”

Segundo Franco, pode-se concluir com o estudo que, por mais que o Brasil faça sua parte para controlar emissões locais e regionais, ainda há uma fração importante de material que é trazido da África, a qual tem potencial de gerar mudanças significativas na atmosfera local da floresta. “Esse fato mostra que o sistema terrestre não é isolado, ou seja, nós não trabalhamos separados de outras regiões, e que uma ação feita em um local, mesmo que muito distante, pode ter consequências importantes aqui”, diz. “Vale ressaltar também que o fenômeno afeta não somente o meio ambiente, mas também a saúde das pessoas e animais que inalam esses elementos.”