Anchor Deezer Spotify

Brasil cria o primeiro banco de sêmen de corais do Atlântico Sul

Brasil cria o primeiro banco de sêmen de corais do Atlântico Sul

Uma inovação inédita na conservação marinha abre caminho para restaurar áreas equivalentes a 600 campos de futebol e reposiciona o Brasil na linha de frente da ciência oceânica global

Há notícias que não chegam gritando. Elas chegam em silêncio, como quem sussurra uma possibilidade de futuro. A criação do primeiro banco de sêmen de corais do Atlântico Sul, liderada por cientistas brasileiros, é exatamente esse tipo de acontecimento: discreto no título, revolucionário no impacto.

Em um momento em que os oceanos aquecem, os recifes branqueiam e a biodiversidade marinha parece lutar contra o relógio, o Brasil acaba de criar algo que soa quase como ficção científica — mas é ciência dura, aplicada, testada e publicada. Um cofre genético vivo, capaz de guardar hoje o que a natureza talvez não consiga mais preservar sozinha amanhã.

No centro dessa história está o coral-couve-flor (Mussismilia harttii), uma espécie endêmica dos recifes brasileiros, símbolo da singularidade do Atlântico Sul — e também de sua vulnerabilidade. Após eventos severos de branqueamento, especialmente em 2019, essa espécie perdeu até 85% de suas colônias. Em termos simples: quase desapareceu diante dos nossos olhos.

Foi a partir desse cenário-limite que nasceu uma resposta ousada.

Quando a natureza já não dá conta sozinha

Os recifes brasileiros são únicos no mundo. São os únicos recifes do Atlântico Sul, abrigam espécies que não existem em nenhum outro lugar e sustentam cadeias inteiras de vida — da pesca artesanal à proteção da linha de costa.

Mas há um problema estrutural que vai além do aquecimento global. Quando as colônias de corais ficam muito distantes umas das outras, algo essencial se perde: a capacidade de se reproduzir naturalmente.

O coral-couve-flor é hermafrodita e, durante poucas noites por ano, libera no mar verdadeiros “pacotes de gametas” — bilhões de espermatozoides e centenas de óvulos. No oceano ideal, isso seria suficiente. No oceano real, aquecido e fragmentado, menos de 1% dos óvulos fecundados consegue se fixar e virar um novo coral.

É aqui que a ciência entra não como substituta da natureza, mas como aliada.

“Quando a densidade populacional cai muito, a natureza sozinha já não dá conta. Tecnologias como a criopreservação passam a ser essenciais”, explica Leandro Godoy, zootecnista, professor da UFRGS e coordenador do projeto.

Um banco genético que funciona — de verdade

O banco brasileiro guarda hoje 2,4 bilhões de espermatozoides viáveis, coletados durante três noites de desova no Parque Marinho Recife de Fora, na Bahia. O dado impressiona, mas o que realmente muda o jogo é outro:

Após 26 meses congelado, o sêmen manteve 100% de eficiência na fertilização, desempenho equivalente ao material fresco.

Isso nunca havia sido alcançado antes para corais.

O resultado, publicado na revista científica Aquatic Conservation: Marine and Freshwater Ecosystems, coloca o Brasil na fronteira da criobiologia marinha, um campo que bebe de técnicas usadas em clínicas de reprodução humana e animal — como citometria de fluxo e análises mitocondriais — agora aplicadas à conservação do oceano.

O projeto é fruto de uma articulação rara e potente entre ciência, terceiro setor e filantropia ambiental, envolvendo a UFRGS, o Projeto Coral Vivo, o IFBA, a Fundação Grupo Boticário, o Funbio e o Instituto Humanize, com investimentos da ordem de R$ 500 mil até aqui.

600 campos de futebol de futuro

Talvez o dado mais simbólico — e mais fácil de visualizar — seja este:
os pesquisadores estimam que o material genético já armazenado tem potencial para restaurar uma área equivalente a 600 campos de futebol.

Claro, ninguém está prometendo milagre rápido. Corais crescem devagar. Espécies maciças como a Mussismilia podem levar até três anos para crescer apenas um centímetro. Ainda assim, modelos científicos indicam que um ambiente funcional pode ser restabelecido em cerca de 15 anos.

No tempo da crise climática, isso não é lentidão. É planejamento de longo prazo, algo cada vez mais raro.

foto de coral no fundo do mar, remete a matéria Brasil cria o primeiro banco de sêmen de corais do Atlântico Sul
Há notícias que não falam apenas de ciência, mas de futuro – Coral-couve-flor – Foto: Divulgação
O Atlântico Sul ganha um “backup da vida”

Há algo de profundamente simbólico nessa iniciativa. Em tempos de nuvens digitais, backups e arquivos de segurança, o Brasil cria um backup biológico do seu oceano.

“Estamos criando uma espécie de cofre genético para os corais brasileiros”, resume Godoy.
“Se eventos extremos continuarem destruindo os recifes, esse banco garante material saudável para recuperar as populações no futuro.”

Nos próximos cinco anos, a previsão é que o banco esteja plenamente operacional para projetos de restauração em campo, com instalação de corais jovens em áreas do litoral de Pernambuco ou da Paraíba.

Paralelamente, a UFRGS estrutura o Centro Nacional de Conservação Genética de Corais, que reunirá:

  • o banco definitivo de sêmen,
  • um banco vivo de corais,
  • e programas de formação para equipes de todo o país.

Mais do que preservar o passado, a ciência brasileira começa a selecionar o futuro, identificando indivíduos mais resistentes a aumentos de temperatura entre 2 °C e 4 °C — algo absolutamente alinhado aos cenários climáticos projetados.

Uma notícia que merece ser sentida

Talvez o aspecto mais bonito dessa história seja perceber que, mesmo diante de perdas enormes, a resposta não foi desistir. Foi investir em conhecimento, cooperação e tempo — três coisas que o debate ambiental costuma negligenciar.

O banco de sêmen de corais não resolve sozinho a crise dos oceanos. Ele não substitui a urgência de reduzir emissões, conter o aquecimento global ou proteger áreas marinhas. Mas ele faz algo essencial: ganha tempo. E tempo, neste momento histórico, é vida.

O Atlântico Sul, por muito tempo esquecido nas grandes narrativas oceânicas globais, agora tem um arquivo vivo de esperança. Um lembrete silencioso de que ainda sabemos cuidar — quando escolhemos fazê-lo.