As três ondas de doenças infecciosas que devem acometer o Rio Grande do Sul — e como contê-las
As chuvas e as inundações que arrasaram o Rio Grande do Sul afetaram milhões de pessoas, deixaram centenas de milhares de desabrigados e causaram mais de 100 mortes. Mas, em termos de saúde pública, as consequências do evento climático continuarão por muito tempo — e exigirão todo um planejamento das autoridades e dos profissionais da área.
Segundo evidências colhidas a partir de outras grandes enchentes que ocorreram no mundo em anos recentes, a tendência é de um aumento importante nos casos de diversas doenças infecciosas, como diarreias, problemas respiratórios, leptospirose, hepatite A e dengue.
Os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil explicam que essas enfermidades virão em ondas, de acordo com o tempo de incubação de vírus, bactérias e outros patógenos e também devido ao tipo de exposição de risco que as pessoas envolvidas na tragédia tiveram e terão daqui em diante.
Confira a seguir que ondas de doenças infecciosas são essas e o que pode ser feito — do ponto de vista individual e coletivo — para diminuir o impacto delas.
Essa linha do tempo se inicia a partir das chuvas e das inundações. Nessas ocasiões, as pessoas que vivem nas áreas afetadas tiveram o primeiro contato com a água.
Muitas também precisaram sair de suas casas a nado — e, nesse processo, tocaram ou ingeriram a matéria orgânica que subiu de bueiros, valas e esgotos.
Esse contato se dá por meio da pele, das mucosas e da boca, pela ingestão acidental desse líquido.
Além disso, alguns indivíduos se feriram em pedaços de vidros, madeiras e outros materiais cortantes — o que também abre novas portas de entrada para patógenos no organismo.
“Como podemos imaginar, essa água está nitidamente contaminada. Ela é escura e deve estar cheia de matéria orgânica, com excretas de humanos e outros animais”, diz o médico Alessandro C. Pasqualotto, presidente da Sociedade Gaúcha de Infectologia.
“E obviamente quem teve contato com esses líquidos corre um risco maior de adoecer”, complementa.
O infectologista pondera que, numa situação de emergência como a que muitos gaúchos passam nos últimos dias, a prioridade é salvar vidas e levar o máximo de pessoas a locais seguros.
Além disso, é preciso lidar com as consequências imediatas do desastre, como os traumas, as fraturas, a hipotermia, os afogamentos e os choques elétricos.
Mas, passados os primeiros dias após o pico das inundações, é preciso se preocupar com as doenças infecciosas que muitos contraíram durante esse processo — o que nos leva à onda número um.
Primeira onda: diarreias e infecções de pele
Muito do conhecimento acumulado sobre as consequências à saúde de grandes enchentes vem de países asiáticos, como Índia, Paquistão e Indonésia, que historicamente lidam com problemas do tipo.
Trabalhos publicados a partir da experiência desses lugares permitiram encontrar uma espécie de padrão nas dinâmicas de doenças infecciosas após o desastre, além de saber o tempo que elas demoram a aparecer.
Um trabalho de 2018 feito na Universidade de Queensland, na Austrália, destaca que “as inundações são o desastre natural mais comum no mundo”.
Ao analisar diversos acontecimentos do tipo, os autores do estudo apontam que, nos primeiros dez dias após o evento climático, as doenças que mais aparecem são as infecções de pele, as pneumonites ou pneumonias por aspiração, as infecções respiratórias virais e as gastroenterites (a popular diarreia).
O infectologista Alexandre Vargas Schwarzbold, professor da Universidade Federal de Santa Maria, no Rio Grande do Sul, explica que muitos desses quadros estão ligados ao contato com a água contaminada.
“Inclusive, as doenças diarreicas são a maior causa de morte por questões infecciosas após desastres hídricos”, afirma.
Os mais vulneráveis a essas infecções intestinais são as crianças muito pequenas e os mais velhos, grupos que merecem uma atenção especial para evitar quadros extremos de desidratação.
As infecções de pele também estão relacionadas a esse mesmo fenômeno — o contato com materiais contaminados das enxurradas.
Já as infecções respiratórias costumam ser consequência das aglomerações. Isso porque dezenas de milhares de pessoas estão em abrigos, muito próximas umas das outras. E essa condição facilita a transmissão de vírus causadores de resfriados, gripe e covid-19.
As moradias improvisadas, com higiene precária, também reúnem as condições para a dispersão de parasitas, como aqueles que provocam a escabiose (sarna) e a pediculose (infestação por piolhos).
Schwarzbold, que trabalha em Santa Maria, diz que já está vendo casos como esses na cidade.
“Como o município fica numa região central do Estado, ele foi afetado antes que a região de Porto Alegre. Então já começamos a observar essa primeira etapa se desenrolar por aqui”, conta o médico, que também é consultor da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBInfecto).
Os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil apontam que o poder público deve estar preparado para lidar com esses cenários.
No caso de escabiose e pediculose, por exemplo, é possível reforçar o estoque de drogas antiparasitárias. Para as diarreias, é necessário garantir acesso à água potável e remédios que aliviam os sintomas.
Para as doenças respiratórias (e algumas outras sobre as quais falaremos adiante), pode-se pensar num reforço na vacinação — há doses disponíveis contra influenza (o causador da gripe), o vírus sincicial respiratório (um dos responsáveis por resfriados), o coronavírus (covid-19) e até contra alguns agentes por trás da pneumonia.
Os membros da SBInfecto e de outras entidades médicas, aliás, estão trabalhando num documento sobre o tema, para orientar quais são as vacinas mais importantes nesse momento e quais públicos podem se beneficiar dessas aplicações.
Do ponto de vista individual, é possível também tomar alguns cuidados para diminuir o risco de contato com patógenos, como lavar bem as mãos, fazer a higiene adequada de frutas e verduras, não comer alimentos que tiveram contato com a enchente e tomar apenas água mineral — ou filtrar, ferver ou aplicar uma solução de hipoclorito de sódio na água que vem de outras fontes.
O Ministério da Saúde possui uma cartilha que detalha os principais cuidados com a água e os alimentos após desastres.
Segunda onda: leptospirose, tétano e hepatite A
Passados entre sete e dez dias das inundações, outras moléstias ganham força e relevância.
A principal preocupação aqui é a leptospirose, doença causada por uma bactéria transmitida a partir do contato com a urina de animais, principalmente ratos.
Muitas vezes, esse micro-organismo invade o corpo de uma pessoa lá atrás, no momento em que ela tem contato com a água contaminada. Mas há um tempo de incubação, ou um período em que o patógeno não dá sinais de sua presença, até que os primeiros sintomas deem as caras.
Geralmente, esse tempo de incubação da leptospirose é de 7 a 14 dias, mas pode se estender por até um mês.
“O indivíduo acometido geralmente apresenta febre, cansaço, dor muscular, particularmente nas panturrilhas, náusea, vômito, pele amarelada…”, lista Schwarzbold.
Mas não é necessário o aparecimento de todo esse rol de sintomas para gerar uma suspeita — ainda mais numa situação como a que se desenrola em tantas cidades gaúchas no momento.
De acordo com os especialistas, mesmo um quadro febril mais simples já é motivo para fazer uma avaliação com um médico. A partir da análise, o profissional da saúde pode levantar uma suspeita diagnóstica e iniciar um tratamento adequado.
No caso da leptospirose, a SBInfecto e outras entidades divulgaram um posicionamento no dia 5 de maio em que defendem o tratamento profilático a indivíduos de alto risco.
Na prática, isso significa que pessoas que tiveram muito contato com material contaminado — como as equipes de socorristas de resgate e voluntários, além dos moradores que ficaram na água por um tempo prolongado — devem tomar um remédio preventivo, antes mesmo de apresentar qualquer sintoma.
Esse tratamento, chamado no jargão médico de quimioprofilaxia, pode ser feito com dois antibióticos (doxiciclina ou azitromicina), prescritos em dose única ou uma vez por semana (no caso de socorristas e equipes de emergência).
Importante: esses fármacos devem obrigatoriamente ser indicados por um médico, nunca tomados por conta própria.
“É preciso dizer que houve muito debate até chegarmos a essa recomendação, pois os estudos que temos à disposição são pequenos”, pondera Pasqualotto, que também é chefe do Serviço de Infectologia da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre.
“Mas, considerando o que estamos vivendo agora, o fato de que não conseguiremos fazer o diagnóstico adequado porque o sistema de saúde está desestruturado e a leptospirose ser uma doença grave, que pode matar, concluímos que alguns grupos poderiam se beneficiar da quimioprofilaxia”, justifica ele.
Para as famílias que forem liberadas a retornar para casa, vale ter um cuidado extra aqui. As autoridades de saúde orientam o uso de equipamentos de proteção, como botas e luvas, na hora de limpar a lama e a água acumuladas — justamente para limitar o contato com a urina contaminada.
Além da leptospirose, os médicos também se preocupam com outras doenças infecciosas transmitidas por água e materiais contaminados nessa segunda onda, como é o caso de tétano e hepatite A.
Para ambas, existem vacinas disponíveis — e alguns indivíduos podem necessitar de um reforço nos próximos dias.
Quando se fala de problemas transmitidos por água contaminada, algo que sempre vem à mente é a cólera.
Mas essa condição não parece ser uma preocupação de momento no Rio Grande do Sul. Isso porque o vibrião colérico, ou as bactérias causadoras do quadro, não são detectadas no Estado há décadas.
No entanto, o Brasil voltou a identificar um caso de contaminação local por cólera em abril deste ano na cidade de Salvador, na Bahia.
“Portanto, precisamos ter uma vigilância laboratorial ativa sobre essa doença também”, opina Schwarzbold.
Terceira onda: dengue
Por fim, algo que historicamente sucede as grandes inundações são as doenças transmitidas por vetores, como é o caso da dengue.
No entanto, a situação no Rio Grande do Sul em relação a esse problema de saúde é incerta, apontam os especialistas. Isso porque o mosquito transmissor, o Aedes aegypti, costuma ficar mais ativo quando a temperatura está elevada, durante o verão e a primavera.
E, em pleno outono, as cidades gaúchas começam a experimentar um clima frio — algo que o Aedes não curte tanto assim.
Por um lado, esse cenário pode significar menos casos de dengue nas próximas semanas.
No entanto, isso não permite que gestores e profissionais de saúde relaxem completamente em relação a essa doença.
“A dengue já era uma preocupação antes das enchentes, pois tivemos um número elevado de casos e mortes no Brasil inteiro neste ano. E isso afetou inclusive áreas que não costumavam ter esse problema, como é o caso da região Sul do país”, analisa Pasqualotto.
“À medida que a água começar a baixar, podemos ter a formação de muitos focos de criadouro de mosquito e a dengue voltará a ser uma preocupação”, complementa ele.
Schwarzbold lembra que, apesar do clima mais frio esperado no Rio Grande do Sul para as próximas semanas, o Estado costuma experimentar nessa época do ano um fenômeno chamado “veranico”, com alguns dias de calor.
“Portanto, se depois dessa inundação tivermos um aumento de temperatura, mesmo que por um período curto, isso pode ampliar a capacidade do mosquito”, analisa o médico. “Daí teremos mais um problema.”
Muito além das doenças infecciosas
As questões de saúde envolvendo um evento climático extremo como este superam a barreira de vírus, bactérias, parasitas e protozoários.
“É como se estivéssemos voltando ao período inicial da pandemia de covid-19, em que toda a assistência de saúde ficou desestruturada”, lembra Pasqualotto.
“Logicamente, o foco agora está no socorro emergencial das pessoas que mais precisam. Mas logo mais, todas as outras doenças podem ficar desassistidas”, diz o infectologista.
Um exemplo são as pessoas que dependem de remédios para controlar o diabetes e a pressão alta.
Sem o devido cuidado, essas enfermidades podem descompensar e gerar as mais diversas consequências, como quadros agudos de infarto e acidente vascular cerebral (AVC).
Quando a água baixar, também haverá necessidade de pensar em como lidar com as questões de saúde mental e todos os traumas acumulados nesse período, lembram os médicos.
O trabalho da Universidade de Queensland citado no início da reportagem destaca que transtornos como estresse pós-traumático e depressão são outras consequências de longo prazo das grandes inundações.
“Portanto, vemos uma preocupação geral dos profissionais da área em como manter todo o sistema de saúde minimamente estruturado”, conclui Pasqualotto.