Arara-azul-de-lear: sertão mais azul


                NG - Um casal de araras se prepara para voar na histórica região de Canudos, nordeste da Bahia
              Demorou mais de 100 anos para a espécie ser encontrada na natureza. Agora, pesquisadores tentam preservar as últimas aves existentes no interior da Bahia

Por André Julião

Ás 9 da manhã, o Sol já castiga os poucos que se habilitam a enfrentá-lo na vastidão semiárida da Estação Biológica de Canudos, na Bahia. Abrigada sob uma rara sombra no paredão de arenito, a bióloga Erica Pacifico, acordada desde as 3 da madrugada, bebe um gole d’água, quente a essa altura, e recebe um chamado no rádio. “Tem filhote. Dois”, diz o colega Thiago Filadelfo, de dentro de uma toca a 50 metros de altura. Capacete na cabeça, o guia João Carlos Nogueira Neto corre para pegar uma gaiola especial. O equipamento é içado, e logo Filadelfo, deitado de bruços no local escuro e malcheiroso por causa das fezes de morcego, acomoda com cuidado os jovens passageiros, que saíram do ovo depois de quatro semanas de incubação.

Assim que os pequeninos chegam ao chão, Erica tira medidas, pesa, verifica se o papo está cheio e coleta restos de comida do bico, além de retirar amostras de sangue e de fezes de cada um antes de devolvê-los ao ninho. Por causa da pesquisa, que ela começou em 2008, os dois filhotes de arara-azul-de-lear (Anodorhynchus leari) terão muito mais chances de chegar à idade adulta – podem viver até 40 anos – do que se tivessem nascido décadas atrás. Contabiliza-se hoje algo entre 800 e 1,2 mil dessas araras na natureza – eram 200 no começo dos anos 2000. “A primeira parte do trabalho era entender melhor a biologia reprodutiva delas, sobre a qual existiam pouquíssimas informações”, conta a bióloga, que constatou, por exemplo, que as araras têm um ou dois filhotes por ano, que demoram em média 95 dias para começar a voar.

A Toca Velha, como é conhecido esse hábitat das araras azuis em Canudos, começou a ser resguardada em 1993, quando a Fundação Biodiversitas, organização conservacionista sediada em Belo Horizonte, adquiriu 130 hectares da área, com o patrocínio da médica americana Judith Hart. Além dali, as aves vivem em outros dois pontos da região. Um deles é a Área de Proteção Ambiental Serra Branca, no limite sul da Estação Ecológica Raso da Catarina, distante 37 quilômetros de Canudos. Outro é o Boqueirão da Onça, um grande fragmento de Caatinga entre os municípios de Sento Sé e Campo Formoso, onde apenas dois indivíduos foram avistados nos últimos anos. Nos paredões vermelhos da Toca Velha, no fim da década de 1970, o biólogo alemão Helmut Sick (1910-1991) observou pela primeira vez a espécie na natureza – até então, a arara-azul-de-lear era conhecida apenas por exemplares taxidermizados ou em cativeiro. Era o fim de um mistério de mais de 100 anos, uma das maiores sagas da história da ornitologia.

Heinrich Maximilian Friedrich Hellmuth Sick desembarcou no Brasil em 1939 com a missão de coletar aves para o Museu de Zoologia da Universidade de Berlim. Com o rompimento das relações diplomáticas entre Brasil e Alemanha durante a Segunda Guerra, Sick se escondeu na serra do Caparaó, na divisa dos estados de Minas Gerais e Espírito Santo, mas acabou sendo descoberto e encarcerado em 1942. Impossibilitado de estudar aves nos quase três anos que passou detido na Ilha Grande, no Rio de Janeiro, começou a observar invertebrados, formando uma coleção de 24 espécies de cupim, 11 delas inéditas.

NG - Um filhote sai do ovo depois de quatro semanas de incubação

Um filhote sai do ovo depois de quatro semanas de incubação. Até três deles podem eclodir, mas a ave que nasce primeiro normalmente vence a competição por alimento com as mais jovens e é a única a sobreviver – Foto: João Marcos Rosa

Àquela época, ainda era desconhecida a origem da arara de cor índigo, de 70 centímetros de comprimento, 20 a menos do que sua parente mais conhecida, a arara-azul-grande (A. hyacinthinus). Os registros científicos atribuíam seu lar à Amazônia, provavelmente porque era do porto de Belém que os animais saíam para serem vendidos no exterior, junto com as “primas” amazonenses. A espécie havia sido descrita em 1856 por Charles Lucien Bonaparte, com base em uma pele depositada no Museu de Paris e em um animal vivo do Zoológico da Antuérpia. Bonaparte, sobrinho do imperador Napoleão, homenageou o artista inglês Edward Lear, um amigo que, em 1832, publicara em um dos volumes de sua obra Illustrations of the Family of Psittacidae, or Parrots uma ilustração da espécie.

No livro, porém, Lear descreve a ave como sendo uma arara-azul-grande. “Ele certamente notou a diferença entre a arara que havia pintado e representantes legítimos de A. hyacinthinus, que sem dúvida também observou. No entanto, sem autoridade para batizar uma nova espécie, teve que aceitar as diferenças encontradas como variações naturais, como o fizeram também inúmeros de seus contemporâneos”, escreveu Sick.

Quando a ave foi reconhecida como nova espécie, Lear já havia abandonado as ilustrações detalhadas de animais para pintar paisagens por causa de uma perda parcial da visão. Mais tarde, o artista se dedicaria à poesia. “Infelizmente, nenhuma carta ou diário sobreviveu para revelar a reação de Lear à homenagem que lhe fora feita. Naquela época, ele estava vivendo e viajando fora da Inglaterra e seu foco era muito mais a pintura de paisagens do que a ornitologia”, diz Robert McCracken Peck, estudioso de Lear na Universidade Drexel, nos Estados Unidos.

Depois de sair da prisão com o fim da guerra, Sick se tornou naturalista da Fundação Brasil Central, tendo coletado diversas espécies e descoberto outras enquanto viajava pelo Xingu com os irmãos Villas Bôas. Em 1965, já como pesquisador do Museu Nacional, no Rio de Janeiro, Sick leu um artigo no qual o ornitólogo holandês Karel Voous afirmava que a espécie não existia de fato: os exemplares existentes eram híbridos de arara-azul-grande e arara-azul-de-glauco (A. glaucus), espécie já extinta, de menor tamanho entre as três desse gênero. O que o holandês não sabia era que Sick já tinha pistas de que o animal vinha de algum lugar no baixo rio São Francisco graças a relatos de outros ornitólogos.

Depois de três expedições nos anos 1970, em 29 de dezembro de 1978, o veterano cientista e os iniciantes Dante Martins Teixeira e Luiz Pedreira Gonzaga, seus alunos no Museu Nacional, chegaram a Euclides da Cunha, para onde as evidências apontavam ser a morada mais provável da espécie. “A gente procurava gaiola pendurada na porta das casas, sinal de que ali tinha gente interessada em ave”, diz Gonzaga, hoje professor do Instituto de Biologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, assim como Teixeira.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *