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Após quase duas décadas, mundo ganha acordo histórico por proteção dos oceanos

Após quase duas décadas, mundo ganha acordo histórico por proteção dos oceanos

O tratado histórico é crucial para fazer cumprir a promessa 30×30 feita pelos países na conferência de biodiversidade da ONU em dezembro, de proteger um terço do mar (e da terra) até 2030

No final da noite de sábado em Nova York, após duas semanas de negociações, os países membros da Organização das Nações Unidas (ONU) chegaram a um acordo para proteger o alto mar. O Tratado dos Oceanos, ou Tratado Biodiversidade Além da Jurisdição Nacional (BBNJ em inglês), foi concluído dezessete anos após o início das conversas, que foram paralisadas em agosto devido à falta de consenso.

“Em Cingapura, gostamos de fazer jornadas de aprendizado, e essa foi a jornada de aprendizado de uma vida”, disse Rena Lee, presidente da conferência, de Cingapura, ao anunciar o acordo na sede da ONU, conforme conta o jornal The Guardian. O tratado visa proteger e regular o uso de áreas fora da jurisdição nacional, que representam mais de 60% do oceano, ou quase metade do planeta. Os recursos genéticos marinhos e como compartilhar esses benefícios foram os principais obstáculos na jornada de negociações.

A reação geral de grupos ambientalistas e conservacionistas foi positiva. Veronica Frank, assessora política do Greenpeace, disse ao jornal que, embora a organização não tenha visto o texto mais recente, “estamos muito felizes. O mundo está tão dividido e ver o multilateralismo sendo apoiado é muito importante”.

Guillermo Ortuño Crespo, co-líder do Grupo de Especialistas em Alto Mar da IUCN WCPA (União Internacional para a Conservação da Natureza), avalia que “Embora esteja longe do tratado que muitos membros da comunidade científica e da sociedade civil desejavam e que a biodiversidade do planeta merece, o novo texto é um passo na direção certa para a conservação e uso sustentável da natureza em nada menos que 46% da superfície da Terra”.

O tratado histórico é crucial para fazer cumprir a promessa 30×30 feita pelos países na conferência de biodiversidade da ONU em dezembro, de proteger um terço do mar (e da terra) até 2030. Até agora, não existia nenhum acordo legal para estabelecer vastas áreas marinhas protegidas (MPAs), o que colocava em risco o cumprimento da meta.

O tratado fornecerá uma estrutura legal para o estabelecimento dessas áreas com o objetivo de evitar a perda de vida selvagem e compartilhar os recursos genéticos do alto mar. Haverá também uma conferência das partes (Cop) que se reunirá periodicamente para que os Estados membros prestem contas sobre questões como governança e biodiversidade.

“O tratado nos permitirá realizar avaliações de impacto ambiental em regiões além da jurisdição internacional e nos permitirá organizar a exploração dos recursos genéticos marinhos de forma que os benefícios sejam para todos os países, que são coletivamente seus proprietários morais”, avalia Carlos García-Soto, pesquisador do Instituto Espanhol de Oceanografia (IEO-CSIC) e presidente do Centro Europeu de Informação sobre Ciência e Tecnologia Marinha (EurOcean), em entrevista ao Centro de Mídia Científica da Espanha. Outro resultado, segundo ele, será a capacitação para os países em desenvolvimento, incluindo a transferência de tecnologia marinha de países mais desenvolvidos.

A High Ambition Coalition – que inclui a União Europeia, EUA, Reino Unido e China – foram os principais atores na intermediação do acordo, segundo o Guardian, construindo coalizões em vez de semear divisões e mostrando disposição para fazer concessões nos últimos dias de negociações. O Sul Global liderou o caminho para garantir que o tratado pudesse ser colocado em prática de maneira justa e equitativa.

O fato de um acordo ter sido alcançado entre 193 nações foi uma grande conquista, mas ainda há espaço para melhorias, segundo os especialistas ouvidos pelos dois veículos. Em particular, os países concordaram que os órgãos existentes já responsáveis pela regulamentação de atividades como pesca, navegação e mineração em alto mar poderiam continuar a fazê-lo sem ter que realizar avaliações de impacto ambiental estabelecidas pelo tratado.

Um dos principais obstáculos, que dividiu as nações desenvolvidas e em desenvolvimento, foi como compartilhar de forma justa os recursos genéticos marinhos (MGR) e os eventuais lucros. Os MGR, que consistem no material genético de esponjas marinhas de profundidade, krill, corais, algas marinhas e bactérias, estão atraindo cada vez mais atenção científica e comercial devido ao seu potencial uso em medicamentos e cosméticos. Outros pontos críticos incluíram o procedimento para a criação de áreas marinhas protegidas e o modelo para estudos de impacto ambiental das atividades planejadas em alto mar.

“Onde o acordo parece ainda mais vago, na falta de leitura do texto, é na repartição dos benefícios econômicos derivados dos recursos genéticos do oceano, onde o tratado parece conter imprecisões, como a questão de que será explorado de forma equitativa base sem articular um mecanismo para conseguir isso”, afirma Carlos Duarte, diretor executivo da Global Coral Reef R&D Acceleration Platform e pesquisador da Universidade de Ciência e Tecnologia King Abdullah, Arábia Saudita.

“Há uma década, publicamos pesquisas mostrando que 10 nações detinham 97% dos recursos genéticos do oceano, com uma empresa, a BASF, detendo 70% das patentes. Em nosso trabalho já apontamos para um mecanismo de compartilhamento de recursos, que é mais sobre compartilhamento e capacitação do que compensação monetária. Isso terá que esperar, talvez mais uma década. Em suma, um passo em frente, mas não com o ímpeto necessário”.

Ángel Borja, pesquisador na área de Gestão Ambiental de Mares e Costas da AZTI e editor-chefe da revista Frontiers in Ocean Sustainability, adiciona que “a pesca não está incluída no tratado e não está claro como algumas resoluções podem ser aplicadas”. Para Carmen Morales, pesquisadora na área da Ecologia no Instituto Universitário de Investigação Marinha da Universidade de Cádiz, será “fundamental a formação de um grupo de pessoas com capacidade para levar a cabo este mecanismo da forma mais eficaz e empenhada, sem originar conflitos de interesses”.

Em um movimento visto como uma tentativa de construir confiança entre países ricos e pobres, a União Europeia prometeu US$ 42 milhões para facilitar a ratificação do tratado e sua implementação antecipada. A sanção do acordo será feita em reunião futura por todos os membros da ONU.