Apoio empresarial falha onde a fome é maior, mostra estudo

Um estudo inédito da Fundação José Luiz Setúbal (FJLS) lança luz sobre fragilidades importantes na atuação do setor privado frente à insegurança alimentar no Brasil. A pesquisa Investimento e apoio empresariais para garantia da Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional no Brasil (2020–2023) analisou 681 iniciativas de 2020 a 2023— período marcado pelos efeitos da pandemia da Covid-19 e desconstrução de aparelhos públicos de combate à fome — de 98 empresas nacionais e multinacionais de grande porte. O estudo revela que as ações empresariais em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (SSAN) têm ocorrido longe de onde a fome é mais crítica, com baixa transparência e foco restrito a partes da cadeia do alimento.
Na análise dos resultados, três pontos se destacam:
- Investimento empresarial não está nos lugares com maior insegurança alimentar: mais da metade das iniciativas (52%) aconteceram no estado onde a empresa tem sede. Isso demonstra uma lógica de conveniência geográfica e não de necessidade social. Regiões como Norte e Nordeste, com os maiores índices de Insegurança Alimentar e Nutricional (IAN), foram significativamente menos contempladas.
- Mais de 70% das ações ocorrem nas pontas da cadeia alimentar: a grande maioria das ações empresariais está focada na produção e no consumo de alimentos, deixando de lado etapas essenciais como armazenamento, transporte e processamento – justamente onde há altos índices de perdas. Mesmo atuando comercialmente nesses elos, as empresas negligenciam seu potencial de impacto nesses pontos.
- Baixa transparência dificulta avaliação real dos impactos: apenas 32,67% das empresas analisadas disponibilizaram relatórios públicos completos para todos os anos do período estudado. A maioria apresenta dados vagos, sem metas, indicadores ou detalhamento de público-alvo e orçamento. Faltam mecanismos de monitoramento e auditorias externas.
“Os dados do estudo mostram que o setor privado está presente no campo da segurança alimentar, mas não estruturado para causar transformação real. É preciso olhar para os territórios onde a fome persiste, apoiar organizações locais, focar em grupos com maior risco de insegurança alimentar, e integrar toda a cadeia alimentar”, afirma Laura Camargo, pesquisadora do Laboratório de Filantropia, Políticas Públicas e Desenvolvimento do Pensi Social, que integra o Instituto Pensi, frente de Ensino e Pesquisa da Fundação José Luiz Setúbal.
Baixo potencial e impacto transformador
A análise aprofundada dos dados revelou uma série de desafios que limitam o potencial transformador do investimento social empresarial em SSAN. Um dos principais entraves identificados foi a baixa institucionalização da filantropia empresarial: apenas 36 das 98 empresas analisadas possuem fundações ou institutos próprios. Isso indica que a maioria das ações está inserida nas áreas de Marketing ou Responsabilidade Social Corporativa (RSC), o que dificulta a alocação de recursos contínuos e estratégicos.
Outro ponto crítico diz respeito ao apoio limitado às organizações da sociedade civil (OSCs). Apenas 3,96% das iniciativas analisadas representaram apoio institucional às OSCs, e somente 2,35% contribuíram diretamente para a manutenção ou estruturação dessas organizações. Isso compromete a sustentabilidade das ações em nível local e restringe o fortalecimento de redes comunitárias.
A prevalência de ações de curto prazo e de caráter reativo também chama atenção. Grande parte das iniciativas analisadas respondeu a contextos emergenciais, como a pandemia de Covid-19 ou desastres naturais, sem compromisso com transformações de longo prazo. Além disso, casos de greenwashing e social washing foram observados: muitas ações tidas como “inovadoras” são, na verdade, práticas já previstas em legislação ou de impacto limitado. Um exemplo recorrente foi a doação de alimentos ultraprocessados, que oferecem pouca contribuição nutricional nos médio e longo prazos.
Outro dado preocupante diz respeito ao desperdício de alimentos. No Brasil, são descartadas cerca de 55 milhões de toneladas de alimentos por ano — volume que poderia alimentar toda a população em insegurança grave. Apesar disso, menos de 5% das ações analisadas abordaram a redução de perdas e desperdícios ou o reaproveitamento de alimentos.
“É urgente que as empresas brasileiras assumam um papel mais estratégico e responsável na garantia do direito humano à alimentação. Isso significa ir além da doação pontual e investir com seriedade, foco territorial e visão de longo prazo”, conclui Maria Victoria Vilela, também pesquisadora do Laboratório.

Investimento por mercado
O estudo revelou que o Agronegócio foi o setor mais engajado no tema dentre os demais, concentrando 52,28% das iniciativas mapeadas, seguido pelo de Alimentos & Bebidas, com 26,87%, e o Comércio Varejista, com 21,29%. Considerando 681 ações, a maioria dessas iniciativas foi realizada na forma de projetos pontuais e de escopo limitado, representando 472 ações. Já os programas, que costumam ter maior duração e capacidade de impacto, corresponderam a apenas 118 ações.
No recorte temático, 45,67% das ações estavam alinhadas à meta 2.4 do ODS 2 (Fome Zero e Agricultura Sustentável), que foca na sustentabilidade e resiliência da agricultura. Outras 42,44% se relacionaram à meta 2.1, que trata diretamente do acesso universal e contínuo a alimentos adequados. Em relação aos mecanismos utilizados pelas empresas, predominam a doação de alimentos (36,1%) e a adoção de práticas sustentáveis de produção (35,4%).
Considerando os grupos em maior risco de exposição à IAN, as ações atenderam principalmente as que se concentraram principalmente em pessoas em vulnerabilidade econômica (21,7%) e em grupos demográficos específicos, como mulheres, indígenas e ribeirinhos (18,5%). Ainda assim, menos da metade das iniciativas teve foco direto nesses grupos.
A distribuição geográfica das ações também revelou desequilíbrios importantes. As regiões Sudeste (240 ações) e Sul (207 ações) concentraram a maior parte das iniciativas, com destaque para os estados de São Paulo (146 ações) e Paraná (125 ações). Já o Norte e o Nordeste, onde os indicadores de IAN são mais alarmantes, foram significativamente menos contemplados.
Sobre o estudo
A pesquisa Investimento e apoio empresariais para garantia da Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional no Brasil (2020–2023) foi coordenada por Pietro Rodrigues, pesquisador responsável pelo Laboratório de Filantropia, Políticas Públicas e Desenvolvimento do Pensi Social, que integra o Instituto Pensi, frente de Ensino e Pesquisa da Fundação José Luiz Setúbal. O estudo dá continuidade a uma investigação anterior sobre o Investimento Social Privado (ISP) voltado à segurança alimentar e inspira uma série de produções e publicações realizadas pelos pesquisadores Laura Camargo, Maria Victoria Vilela e Pedro Luiz dos Santos.
O estudo mapeou 150 empresas dos setores de Agronegócio, Alimentos & Bebidas e Comércio Varejista, com base no ranking Valor 1000 (2023), entretanto apenas 98 possuíam alguma ação relacionada à ODS 2 Os dados foram extraídos de relatórios públicos — como os de sustentabilidade, ESG e atividades — e analisados com critérios como localização, tipo de ação, público-alvo, elo da cadeia produtiva e aderência ao ODS 2(Fome Zero e Agricultura Sustentável) e o ODS 12 (Consumo e Produção Responsáveis) da ONU.
Confira a pesquisa completa AQUI.
Sobre a Fundação José Luiz Setúbal (FJLS)
A Fundação José Luiz Setúbal é o maior sistema de saúde infantil do País. Com o propósito de pensar, cuidar e defender a infância saudável no Brasil, promove o bem-estar de crianças e adolescentes por meio da assistência médica, ensino e pesquisa e advocacy e filantropia.
É formada pelo Sabará Hospital Infantil, localizado na cidade de São Paulo (SP), e referência no atendimento de crianças e adolescentes até 18 anos; pelo Instituto PENSI e pelo PENSI Social– frentes de Pesquisa e Ensino em Saúde Infantil, que realizam e promovem estudos científicos para profissionais da saúde, educadores, famílias e sociedade em geral; e pelo Infinis – Instituto Futuro Infância Saudável, braço de filantropia e advocacy, que luta em defesa da saúde da criança e do adolescente e do fortalecimento da sociedade civil no Brasil.