Animais do Pantanal aprendem a ‘mendigar comida’ para sobreviver na seca
A sucessão de eventos adversos no Pantanal, que sofreu incêndios devastadores em 2020, perdeu parte importante de sua superfície de água e vive seca histórica neste ano, pode estar tendo efeitos nos hábitos dos animais que vivem ali – a começar pela oferta de comida disponível a eles.
Embora estabelecer (ou não) uma relação causal direta dependa de estudos aprofundados, profissionais que atuam no Pantanal observam algumas mudanças.
“O fogo pode estar menos intenso (neste ano), mas a fome e a seca estão mais presentes”, diz à BBC News Brasil Ilvanio Martins, presidente da Fundação Ecotrópica, que gerencia quatro reservas ambientais no Pantanal – uma delas praticamente inteira consumida pelas queimadas no ano passado.
“A fome não é tão escandalosa quanto o fogo, mas seu efeito é ainda mais devastador. Ela é severa e silenciosa. E afeta toda a cadeia (ecológica). A árvore que queimou não floriu; as que floriram não germinaram tantas sementes, e daí conseguem alimentar uma quantidade menor de pássaros e roedores”, ele relata.
Um exemplo são as árvores de ipê, que segundo Martins são fonte de alimento aos animais. “E a florada dos ipês foi muito mais tímida neste ano.”
Estão fazendo falta também muitas palmeiras que alimentavam e abrigavam araras azuis e roedores.
Segundo Jorge Salomão, veterinário da organização Ampara Animal Silvestre no Pantanal, muitos animais haviam tido sucesso em se adaptar ao ambiente após os incêndios do ano passado: se deslocando e migrando para outras áreas do bioma, eles conseguiam, de alguma forma, se alimentar.
“O que complicou muito, neste ano, foi a seca”, explica o veterinário à BBC News Brasil.
“Então os animais saíram de uma situação crítica (de fogo) e emendaram na seca mais intensa dos últimos dez anos.”
Mudança de hábitos e ‘mendicância’
A seca reduz as áreas naturais disponíveis para os animais se banharem, tomarem água e se alimentarem.
Ilvanio Martins conta que, em uma de suas visitas recentes a campo, em setembro, se deparou com “animais debilitados, perambulando”.
“Quando esses animais não encontram a água que antes estava ali, eles se desorientam.”
Além disso, nos pontos em que a água deixou de fluir com a mesma intensidade de antes, os peixes não conseguiram se reproduzir no mesmo volume, ele explica. Portanto, deixaram de ser fonte de alimentos para as aves.
Segundo Martins, a consequência é que parte dos animais precisou mudar de hábitos para obter comida. Alguns passaram a “furtar” alimentos de cozinhas e restaurantes ou de locais dos quais antes não ousariam se aproximar.
Outros passaram a comer alimentos diferentes do que normalmente comeriam. “Vimos macacos e periquitos comendo manga verde, que não seria parte da dieta deles.”
Macacos passaram, também, a estender a pata a humanos, pedindo comida – “como se fossem mendigos”, diz Martins -, porque descobriram que são capazes de conseguir alimentos dessa forma.
Para o veterinário Jorge Salomão, porém, esse comportamento dos macacos vem do fato de eles terem se condicionado a contar mais com os alimentos distribuídos pelos humanos.
“Teve essa mudança de comportamento, mas acho que ela se deve muito ao assistencialismo feito no ano passado (para minimizar os danos dos incêndios)”, explica.
“Os primatas aprendem muito rápido, passaram a pegar comida da mão da gente. Mas eu acho que é uma alteração comportamental mais por eles terem perdido o medo de se aproximar do que pela dificuldade (em conseguir comida).”
O zootenista Thiago Graça também notou mudanças de hábito “absurdas e não naturais” dos animais por culpa da escassez.
Ao verem a comida ofertada pelos humanos, “os animais chegam com uma voracidade alarmante, com o desespero da fome”, diz Graça, que é técnico da organização GRAD (Grupo de Resgate de Animais em Desastres).
“O Pantanal perdeu muita árvore frutífera, muito material verde e muita fauna também. Não é natural eles se aproximarem tanto da gente.”
Na opinião da bióloga e zoóloga Daniella França, da organização pantaneira Chalana Esperança, os animais parecem estar passando fome em consequência da seca e dos incêndios, mas os relatos ainda precisam ser analisados caso a caso e devidamente estudados para estabelecer uma relação causal.
“O que podemos fazer, por enquanto, é nos basear em situações que já tenham ocorrido no passado e, é claro, tentar ajudar com a dessedentação (combate à sede) e alimentação em locais estratégicos, como fizemos no ano passado, mas sempre aprendendo com os erros”, diz ela.
Do ponto de vista técnico, ela explica, isso passa por evitar ao máximo dar alimentos errados para alguns tipos de animais (por exemplo, alimentos que possam expor os bichos a bactérias às quais não estão acostumados) ou deixar a comida muito perto da rodovia Transpantaneira (onde os animais correm o risco de serem atropelados).
Portanto, diz ela, a oferta de comida tem de passar pelo crivo de especialistas no ecossistema pantaneiro.
Essa oferta humana – especializada – de alimentos e água tem sido necessária, explicam as organizações, para amenizar a situação crítica de animais neste momento.
A Ampara Silvestre tem alugado caminhões-pipa que comportam 50 mil litros de água para irrigar lugares onde habitualmente haveria água natural e que, portanto, são frequentados pelos animais.
“Mas o tempo está muito seco. Então de onde tirar 50 mil litros de água? Estamos tirando de poços, mas não dá para fazer isso por muito tempo. Temos que torcer para que chova logo”, diz Salomão.
Nesses mesmos lugares alagados, os membros da ONG também colocam comida.
“Compramos (o peixe) tuvira dos pescadores e deixamos para as lontras, ariranhas – é uma comida do próprio bioma”, explica Salomão.
“Também deixamos frutas e verduras, como banana, mamão, batata doce e maçã. É complexo, porque não é o que os animais comeriam normalmente. Mas tomamos cuidado ao escolher para que, mesmo que mais deles (frutas e verduras) nasçam pela dispersão de sementes, não prejudiquem o bioma nem atrapalhem as espécies nativas.”
Ovos, que são fonte de proteína, também têm sido devorados por muitos animais, explica Thiago Graça. “Até mesmo as cascas dos ovos, os pequenos pedacinhos, estão sendo comidos. É uma situação surreal.”
Bioma ameaçado
Com a comida mais escassa, esses mesmos animais terão mais dificuldade em cumprir um papel ecológico importante: o de dispersar sementes pela mata e ajudar a renová-la, afirma Martins. Dessa forma, a fome dos animais contribui para um ciclo vicioso na região.
Historicamente, prossegue, “o Pantanal não é um ambiente pronto e acabado: ele está em constante mudança e construção, em sua alternância entre cheia e vazante”.
O que preocupa, porém, é que as áreas afetadas pelas secas e pelo fogo intenso estão com uma terra mais arenosa e empobrecida, afirma ele.
“A terra perde nutrientes e capacidade de gerar vida”, diz Martins. “A semente cozinha no chão e não brota. Esse ‘agrestamento’ é perceptível por aqui.”
Nos incêndios do ano passado, quase um terço de todo o Pantanal foi consumido pelo fogo.
De janeiro de 2020 até meados deste ano, as queimadas haviam destruído 3,8 milhões de hectares nesse bioma, afetando ao menos 65 milhões de animais vertebrados nativos e 4 bilhões de invertebrados, aponta um estudo publicado em junho por pesquisadores das organizações ambientais ICMBio, PrevFogo/Ibama e Embrapa Pantanal, feito com base na densidade das espécies presentes nos locais afetados.
Esses animais sofreram tanto impacto direto – como ferimentos ou morte – ou indireto, pela perda de seu habitat.
Neste ano, a seca provoca quedas históricas nos níveis dos rios pantaneiros e traz risco de devastação ainda mais grave, segundo ambientalistas ouvidos pela Câmara dos Deputados em julho em audiência na Comissão de Queimadas nos Biomas Brasileiros.
“Desde o fim da década de 1990, o período seco tem ficado mais seco e também o período chuvoso tem ficado mais seco”, disse na audiência, segundo a Agência Câmara, Gilvan de Oliveira, coordenador de Ciências da Terra do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais).
“De 2010 em diante, temos um predomínio de chuva abaixo da média. Então algo realmente está acontecendo no Pantanal, e obviamente chama a atenção o período 2020-2021. Neste ano, não é possível somente fazer orientação ou informativos: têm que ocorrer ações efetivas”, disse.
Segundo dados de satélite analisados pela organização MapBiomas, o Pantanal – que é a maior planície úmida do planeta – perdeu 29% de sua superfície alagada nos últimos 30 anos.
A seca prejudica a reprodução de animais, como peixes, e propicia que mais incêndios ocorram.
Com a oferta humana de alimentos, “estamos atendendo uma demanda emergencial neste período de seca, que espero que pare quando a chuva volte”, afirma Thiago Graça.
No entanto, a preocupação é que, à medida que o Pantanal fica cada vez mais exaurido, não consiga se regenerar e se preparar para as temporadas de seca futuras.
“A cada ano o Pantanal parece que vai precisar mais da nossa ajuda”, conclui.