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“A tecnologia sozinha é incapaz de resolver o aquecimento global”

“A tecnologia sozinha é incapaz de resolver o aquecimento global”

Os cerca de 300 mil anos que o Homo sapiens tem de história parecem irrisórios diante dos 4,54 bilhões de anos de existência da Terra. Mas as alterações ambientais provocadas pelos humanos, em especial no último século, foram tão significativas que especialistas passaram a chamar a atual era geológica de Antropoceno — do grego anthropos, que significa humano, e kainos, que quer dizer novo.

Além dos efeitos na atmosfera, com emissões de gases que contribuem para o aquecimento global, alteramos a biomassa do planeta: em 2020, tudo o que foi construído pela humanidade (sem contar o lixo) superou pela primeira vez a massa de todos os seres vivos, segundo um estudo publicado na Nature.

Todo esse impacto é sentido diretamente no clima, que hoje se tornou um problema econômico, político e social. A situação tem se tornado tão crítica que há quem já busque alternativas fora da Terra. “Há quem sugira ir para Marte. De verdade, não é brincadeira”, escreve a matemática Tatiana Roque, professora de história das ciências e filosofia na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em O dia em que voltamos de Marte. Lançado no fim de 2021 pela editora Planeta, o livro traça a história de quatro séculos de ciência, relacionando-a a questões políticas, filosóficas e sociais.

Trata-se de uma jornada em detalhes sobre os avanços tecnológicos, as disputas em torno de paradigmas científicos, a consolidação da figura do cientista e a aplicação da ciência na vida prática — tudo para provocar o leitor a tirar os olhos do espaço e fincar os pés no chão. “Vejo essas expedições de alguns bilionários para a Lua, para o espaço sideral, como um prenúncio de que existe uma tendência a se buscar soluções para esses problemas fora da Terra”, afirma Roque, em entrevista a GALILEU. “Mas as soluções precisam ser buscadas não em outros planetas, e sim aqui mesmo.” A seguir, ela fala sobre as perspectivas para enfrentar os atuais desafios.

Logo no começo do livro, você diz que vai trazer pistas para a gente voltar a acreditar na vida na Terra, mas temos vários exemplos bastante pessimistas. Quais você considera os principais indícios de que nosso futuro talvez não seja tão assustador?

Uma sugestão que faço no livro é que, por ora, deixemos de lado a ideia de futuro e pensemos somente no presente, para a gente poder tornar algum futuro possível. Precisamos encontrar a solução para esses problemas no presente, quando eles já estão acontecendo. Sem isso, nem poderemos pensar em futuro. Então, na verdade, não são tanto pistas para a gente construir ou revigorar uma ideia de futuro — ideia que está em aberto, uma vez que é muito difícil falar de futuro diante de todos os desafios e ameaças que já estão apresentadas. Cuidar do futuro é agir no presente, pois não tem como um futuro ser possível se a gente não fizer algo aqui e agora.

“Cuidar do futuro é agir no presente, pois não tem como um futuro ser possível se a gente não fizer algo aqui e agora”

Tatiana Roque

E o que que a gente tem feito de positivo no aqui e agora?

Nada. Eu acho que a única coisa positiva é que os cientistas têm avançado no consenso demonstrando as mudanças climáticas e os riscos decorrentes delas. Isso tem impactado muito a ciência, a própria definição de Antropoceno que eu faço no livro também é algo muito marcante. Fundar uma nova era geológica a partir da ação humana no planeta é algo realmente inédito até aqui. Agora, temos avançado muito pouco em relação ao que fazer diante disso. Existe um verdadeiro abismo entre o consenso científico do problema e as ações dos países para evitar esse problema. Nas próprias conferências do clima, embora haja alguns acordos e uma conscientização maior de que é preciso limitar a emissão de carbono, até essas soluções são completamente insuficientes e defasadas em relação ao grau das ameaças.

A gente consegue definir quando foi que tudo começou a dar errado para a humanidade?

Enfatizo muito no livro a descoberta das mudanças climáticas. Acho que esse foi o momento da virada, não porque isso fez com que tudo começasse a dar errado, mas porque tornou explícito o fato de que a gente não pode contar apenas com a ciência e com a tecnologia para encontrar soluções para os problemas da humanidade. Até ali se acreditava que, com o avanço tecnológico e da indústria, a humanidade conseguiria achar solução para os seus problemas, como desigualdade, pobreza, fome, então a tecnologia serviria como um remédio.

Agora, o que aconteceu a partir dessa descoberta do aquecimento global é que ficou bastante claro que a tecnologia é incapaz de resolver esse problema. A humanidade vai ser obrigada a inventar saídas políticas, econômicas, sociais. Claro que isso não quer dizer que a gente não precise da tecnologia. A gente vai precisar de muita tecnologia, mas ela é uma ferramenta, não uma solução.

O que a gente deveria estar discutindo para enfrentar todos esses desafios?

A renda básica certamente é uma delas. A gente precisa fazer com que as pessoas tenham direito à renda, de uma forma igualitária, independentemente do emprego. Isso não quer dizer que não se vá criar empregos, indústrias e novas atividades econômicas que gerem empregos. Mas não deve ser necessário ter um emprego para ter direito à renda. Além disso, serviços básicos universais, como educação e saúde. As pessoas deveriam ter direito a uma vida boa, independentemente de ter um emprego assalariado. E existe riqueza para isso. É só a riqueza ser mais bem distribuída.

Também precisamos mudar os nossos modos de produção das coisas básicas de consumo, principalmente a comida. A produção de alimentos é uma coisa muito essencial, mas hoje o modo de produção da agricultura, com o agronegócio, é muito prejudicial para o meio ambiente. No caso do Brasil, uma das maiores fontes de emissão de gases de efeito estufa é a pecuária. Então seria necessário mudar completamente o modo de produção, produzindo com base em agricultura familiar, agroecologia, mas em grande escala de modo a suprir o nosso mercado interno e garantir segurança alimentar para a população.

A gente tem que conseguir reestruturar nossa economia a partir das demandas básicas da população, que são educação, saúde, alimentação e garantia de renda. A partir daí é possível ter uma economia mais baseada nas vocações territoriais de cada região do país. Em vez de desmatar um bioma para poder fazer uma atividade que não tenha nada a ver com a natureza de lá, tentar criar atividades que se baseiem nas características singulares daquele bioma.

A maior parte desses desafios do futuro será enfrentada pelas crianças e pelos adolescentes de hoje. Você inclusive fala que o filho do Elon Musk pode acabar indo para Marte, mas os nossos filhos provavelmente vão ficar aqui na Terra. Como a Geração Z pode se preparar para lidar com esse planeta que a gente está deixando para eles?

Essa geração é fundamental, porque é ela que pode se mobilizar para enfrentar mudanças que podem ser muito difíceis. Acho que a gente precisa muito fazer um discurso totalmente voltado para essa geração e, além disso, promover uma verdadeira revolução no ensino.

Não é possível a gente estar atravessando um período de transição como este e continuar ensinando na escola as matérias da maneira como a gente fazia antes, como se a gente estivesse falando em um mundo do século 20. A gente precisa de uma mudança total no ensino, em que as ideias de mudanças climáticas, automação, robotização, redes sociais, todos esses desafios contemporâneos, possam reestruturar a própria organização do currículo. Para abordar problemas, a gente teria que trabalhar matemática, física, filosofia, sociologia de forma integrada.

“Acho que as mudanças climáticas podem ser uma oportunidade para fazer uma transformação que já era necessária há muitos anos.””

Tatiana Roque

Ao mesmo tempo em que a gente tem essa falha no ensino, há uma grande expectativa em relação a essa geração. Não é um pouco injusto depositar tanta expectativa nos ombros de pessoas que ainda estão em formação?

É, mas quando estou falando da expectativa sobre essa geração não é tanto a expectativa de que essa geração vá ser protagonista no âmbito da política. A luta política é a gente que tem que fazer: pessoas da minha geração e um pouco mais jovens. Como eu falo no livro: tem essa missão de ancestralidade, de a gente se preocupar em sermos bons ancestrais, de pensar em que mundo queremos deixar para os nossos descendentes diretos e indiretos e amigos.

Se você fosse presidente do mundo hoje, o que que você faria? Que medidas tomaria para nos tirar dessa emboscada que vivemos?

Proibiria completamente os combustíveis fósseis, já. Isso é uma coisa que já deveria ter sido feita ontem, há muito tempo. E está provado que diminuir significativamente produz efeitos imediatos na atmosfera, então eu acho que a primeira coisa seria isso. E é claro que ia ter resistências enormes, ia ser uma verdadeira guerra das empresas de petróleo contra mim — eu mostro no livro tudo o que eles foram capazes de fazer nos anos 1990, fomentando o negacionismo climático que deu origem a muitos movimentos que ganharam espaço.

A segunda coisa a ser feita seria promover grandes movimentos envolvendo a juventude, participação social, enfim, formas democráticas de se criar movimentos que apoiassem essas medidas. E, além disso, incentivar a transformação radical dos sistemas produtivos. Acabar com essas grandes viagens das mercadorias e de todos os bens, inclusive de primeiras necessidades. Na pandemia, coisas de que as pessoas precisavam imediatamente, como respiradores, eram fabricadas em países distantes, e havia problema logístico na distribuição.

Por fim, implementar uma renda básica universal, cobrando um imposto sobre transações financeiras. Ou seja, sobre todo aquele acúmulo de riqueza que é feito a partir do sistema financeiro. Tudo aquilo que as grandes empresas da economia do conhecimento, como Amazon e Facebook, acumulam em cima das nossas redes sociais e nosso trabalho precisa ser taxado.

Todas essas mudanças precisam acontecer muito rápido. Como a gente pode preparar os adultos para encararem e enxergarem o que está acontecendo?

No livro, eu inverto um pouco essa pergunta. Não é tanto o que nós podemos fazer para enfrentar as mudanças climáticas, é o que as mudanças climáticas podem fazer por nós. Não é que a gente esteja vivendo em um mundo maravilhoso, com os problemas todos resolvidos, e as mudanças climáticas estão nos trazendo um problema, um obstáculo, algo que vai atrapalhar a nossa organização social. Não é isso.

A gente vive em um mundo cheio de problemas, as pessoas estão muito angustiadas, há uma desigualdade enorme, tem pessoas passando fome, tem violência, ódio nas redes sociais. A gente já vive em um mundo complicado. Como a gente pode aproveitar essa oportunidade de que existe um desafio real, uma ameaça que coloca a própria existência da humanidade em questão, para reorganizar completamente nossa política e nossa economia?

É uma perspectiva realista. Acho que as mudanças climáticas podem ser uma oportunidade para fazer uma transformação que já era necessária há muitos anos.