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A salvação começa à mesa, o mundo será o que comemos. Artigo de Carlo Petrini

A salvação começa à mesa, o mundo será o que comemos. Artigo de Carlo Petrini

“Vamos começar a remendar o que existe, ao invés de continuar construindo e cobrir de cimento e, pelo outro lado, vamos cultivar e proteger com cuidado os solos, permitindo que continuem a nos fornecer alimentos bons e saudáveis. Vamos aprender a caminhar na terra com respeito, aliás, sem um solo vivo não há futuro”, escreve Carlo Petrini, fundador do Slow Food, ativista e gastrônomo, sociólogo e autor do livro Terrafutura (Giunti e Slow Food Editore), no qual relata suas conversas com o Papa Francisco sobre ecologia integral e o destino do planeta, em artigo publicado por La Stampa, 05-12-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.

Eis o artigo.

Hoje se comemora mundialmente o dia do solo, um marco ligado à necessidade urgente de sensibilizar as pessoas para a questão crucial da preservação do solo, um bem comum não adequadamente protegido e cada vez mais depredado pela ação do homem. Na Itália, este ano, o dia chega junto ao dramático deslizamento de terra de Ischia, que arrastou consigo a vida de muitas pessoas e que mais uma vez destacou o que acontece quando uma zona hidrogeologicamente vulnerável se torna extremamente urbanizada e antropizada.

E, no entanto, no país, só se fala em solo quando ocorre uma catástrofe, são lamentadas as perdas e os políticos tentam compensar sua indiferença, apontando o dedo em busca de um culpado. Nesse caso, penso que toda a classe política da última década deveria assumir a culpa. Os projetos de lei para conter o consumo do solo vêm se sucedendo desde 2012, mas pontualmente são engavetados em uma das duas casas do Parlamento.

Isso acontece porque, se pensarmos bem, o consumo do solo é percebido como uma renda que movimenta uma parte importante da economia e, visto que nos ensinaram que se o PIB cresce isso significa que tudo vai bem, nenhum governo quer assuma a responsabilidade de promover uma lei que proteja um dos elementos mais vitais que temos. Aliás, esses fatos são uma benção para quem pensa apenas em termos de PIB: a economia cresce no momento em que se constrói e cresce naqueles dias em que trabalhamos para limpar os escombros. Talvez esses fatos deveriam nos fazer pensar no absurdo do PIB.

Por trás desse raciocínio esconde-se a mentalidade produtivista, filha de dois séculos de industrialização que permitiu ao homem prosperar (e esbanjar) neste planeta, alcançando níveis de bem-estar nunca antes vistos, porém em detrimento da Terra e de seus preciosos recursos.

Referindo-se ao solo, essa mentalidade deu origem a uma situação paradoxal que agora está se tornando incômoda demais para ser ignorada. O que quero dizer com isso? Por um lado, refiro-me ao solo inexplorado na sua essência de elemento vital, porque se considera mais útil cobri-lo de cimento e, por outro lado, ao solo superexplorado por práticas agrícolas intensivas que literalmente o estão esgotando.

Deixe-me explicar melhor: de acordo com os dados publicados no último relatório nacional de Ispra de 2022 (Instituto Superior de Proteção e Pesquisa Ambiental), verifica-se que, de toda a última década, 2021 foi o ano em que mais solos foram cimentados. Fala-se de uma média de 19 hectares por dia, com uma velocidade superior a 2 metros quadrados por segundo. A falta de lógica disso tudo reside no fato de que, enquanto a população italiana diminui – estamos falando de uma verdadeira crise demográfica – o consumo do solo aumenta e se continua a construir tanto nas áreas urbanas e suburbanas quanto naquelas rurais. Portanto, está acontecendo exatamente o oposto do que se esperaria racionalmente, bem como numa orientação atenta à tão invocada sustentabilidade e transição ecológica.

O consumo de solo – em benefício de uma edificação que nem sempre é necessária (quando será feito um levantamento preciso dos armazéns abandonados?) – provoca o fenômeno de impermeabilização do solo que já não consegue mais absorver água. As chuvas, não conseguindo penetrar no solo, por um lado inundam as cidades e por outro não vão alimentar os aquíferos, diminuindo assim a quantidade de água de que dispomos (e com a seca do último ano e meio deveríamos fazer tudo, menos evitar o acúmulo de reservas de água). Em áreas já vulneráveis devido à conformação particular do território, a combinação de predominância de cobertura edilícia e chuvas violentas (que, aliás, estão destinadas a aumentar devido à crise climática) pode levar à instabilidade hidrogeológica com consequências até fatais, como aconteceu recentemente em Ischia e não muito tempo atrás, primeiro nas Marche.

Acompanhando o manto de cimento que sufoca o solo em todas as latitudes temos a agricultura intensiva, que subjugou esse recurso natural vital a dinâmicas produtivistas predatórias.

Na União Europeia, 70% dos solos estão se encaminhando para uma degradação progressiva – que se transformará em desertificação se não agirmos para interrompê-la – e tanto maior quanto mais alta for a incidência de atividades agrícolas e zootécnicas intensivas; responsáveis pela alteração dos equilíbrios dos ecossistemas naturais, bem como pelo empobrecimento do solo.

De acordo com os dados fornecidos pela FAO, devido à degradação das terras agrícolas, estima-se uma diminuição da produtividade de mais de 10% até 2050, bem como uma perda de micronutrientes essenciais para a saúde humana (zinco, ferro, iodo) que as plantas podem obter exclusivamente do solo. Se a isso for somada a crise climática presente, o fato que a população mundial chegará a 10 bilhões e que o crescimento da demanda por alimentos será igual a 60%, veremos que proteger e manejar o solo de forma sustentável é indispensável para a segurança alimentar global.

A adoção de práticas agrícolas regenerativas que protegem e restauram a fertilidade dos solos, como a agroecologia por exemplo, torna-se, portanto, um imperativo que não podemos mais ignorar. Os solos saudáveis albergam a maior biodiversidade do mundo (estamos falando de dois terços de todos os seres vivos), o que é indispensável para o bom funcionamento dos nossos ecossistemas. Além disso, solos ricos em matéria orgânica (micróbios, fungos, bactérias) são importantes aliados na mitigação das mudanças climáticas justamente devido à capacidade dos organismos presentes de sequestrar carbono da atmosfera e depois armazená-lo sob a superfície terrestre.

Chegou a hora de tomar consciência de que não é mais possível pensar que, estando o solo abaixo de nós, estamos autorizados a pisá-lo sem nenhuma noção. Por um lado, portanto, como diria o meu amigo Renzo Piano, vamos começar a remendar o que existe, ao invés de continuar construindo e cobrir de cimento e, pelo outro lado, vamos cultivar e proteger com cuidado os solos, permitindo que continuem a nos fornecer alimentos bons e saudáveis. Vamos aprender a caminhar na terra com respeito, aliás, sem um solo vivo não há futuro.