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A importância do cultivo de plantas nativas em projetos paisagísticos

A importância do cultivo de plantas nativas em projetos paisagísticos

A extração irregular, o aquecimento global e o adensamento urbano provocam a extinção de espécies ornamentais nativas, reduzindo as possibilidades de biodiversidade e prejudicando o equilíbrio ecológico

O principal conceito do paisagismo é planejar, projetar e preservar a natureza. Atualmente, muitos jardins urbanos ou residenciais são montados com plantas ornamentais exóticas, ou seja, espécies que foram extraídas de seu habitat natural. No Brasil, mais de 90% das plantas usadas em projetos paisagísticos não são nativas, segundo estudos da Lista Nacional Oficial de Espécies da Flora Ameaçadas de Extinção, produzida pelo Centro Nacional de Conservação da Flora do Jardim Botânico do Rio de Janeiro (CNCFlora/JBRJ).

O problema é que essa prática é danosa ao meio ambiente: as espécies vindas de fora podem atrapalhar o crescimento da vegetação nativa. Além disso, demandam mais cuidados de manutenção, como a rega intensiva, que prejudicam a sustentabilidade.

Isso pode ter efeitos ainda mais graves, como a extinção generalizada da flora. De acordo com a bióloga-paisagista Bel Harris, algumas espécies exóticas podem entrar em extinção porque não se adaptam ao novo habitat. “As que conseguem sobreviver geralmente são de fácil cultivo, então se adaptam bem. Mas algumas delas podem ser invasoras e levar à extinção as próprias espécies nativas”, ela explica.

Países tropicais como o Brasil são excelentes para plantas exóticas, dado que possuem clima e substrato ideais para a sua propagação, apresentando vantagens orgânicas competitivas com relação às espécies nativas. A desvantagem é que elas geram mais custos e demandam mais recursos para sobreviver. Por exemplo, o biólogo Gustavo Martinelli aponta que o consumo de água para cultivar espécies exóticas costuma ser muito maior. “Quando você mescla a vegetação, pode acontecer uma competição biológica. Por não pertencerem àquele local, as exóticas demandam mais cuidados”, esclarece.

Mesmo com esses empecilhos ambientais, por que será que plantas exóticas ainda são tão visadas em projetos paisagísticos? Segundo o biólogo Anderson Santos, fundador da Escola de Botânica, em São Paulo, essa prática tem resquícios históricos. Os portugueses trouxeram muitas flores da Europa e da Ásia para incrementar os jardins dos antigos casarões, pois eles consideravam que a vegetação brasileira – preservada pelos indígenas – era “selvagem” e um símbolo de atraso econômico.

“Com a chegada de Dom João VI e o estabelecimento do Jardim Botânico do Rio, começam a nascer coleções efetivamente botânicas por aqui. O objetivo era criar jardins que tivessem um aspecto interessante, de visual bonito e, acima de tudo, com plantas que remetessem à Europa”, ele diz.

Pluralidade em xeque

O Brasil é o país continental com a maior diversidade de vegetação do mundo, seguido por China, Indonésia, México e África do Sul. São quase 50 mil espécies registradas e a maioria pertence ao grupo de angiospermas, caracterizado pela presença de frutos, flores e sementes – como o ipê, a roseira, o jacarandá e outros exemplares ornamentais.

Um dos grandes nomes do paisagismo brasileiro, Roberto Burle Marx passou a vida e a carreira empenhado em pesquisar, defender e ressaltar as plantas encontradas em território nacional. Com a expansão generalizada do uso de espécies exóticas no país, a integridade de alguns de seus projetos originais foi abalada.

Hotel boutique Casa Marambaia, na Serra Fluminense, tem projeto de paisagismo original de Roberto Burle Marx — Foto: Foto: Denilson Machado / MCA Estúdio / Divulgação

Hotel boutique Casa Marambaia, na Serra Fluminense, tem projeto de paisagismo original de Roberto Burle Marx — Foto: Foto: Denilson Machado / MCA Estúdio / Divulgação

É o que aconteceu no jardim da Fazenda Marambaia, localizada em Petrópolis, RJ. A vegetação idealizada na década de 1950 por Burle Marx ficou sem manutenção por muito tempo em razão do fechamento do local. No ano passado, o espaço foi reformado para virar um hotel de luxo e, com isso, precisou ser repaginado.

“As únicas plantas existentes eram árvores de pequeno porte e espécies do gênero hemerocallis, que são resistentes”, conta a paisagista Daniela Infante, responsável pela restauração do jardim. Nesse processo, ela precisou fazer várias adaptações do conceito original. Por sorte, conseguiu contatar o jardineiro que acompanhou o profissional na época e, por meio de fotografias, identificou algumas das espécies que ele utilizou.

Daniela substituiu o coleus-amarelo (Solenostemon scutellarioides), por exemplo, pelo pingo-de-ouro (Duranta erecta). “Por causa do aquecimento global, algumas espécies não sobreviveram”, ela comenta. Para o novo projeto, a paisagista escolheu flores resistentes às alterações climáticas da Serra Fluminense, como a folha-de-sangue (Iresine), o lambari-roxo (Tradescantia zebrina), a estrelítzia (Strelitzia reginae) e manteve a quaresmeira (Tibouchina granulosa) colocada por Burle Marx.

Efeitos fatais

O relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática (IPCC, sigla em inglês), publicado em agosto, mostrou que, nas próximas duas décadas, a temperatura média do planeta deve aumentar 1,5 °C. O aquecimento global provoca climas cada vez mais extremos, o que afeta diretamente o ciclo saudável de vida das plantas.

Em março deste ano, o biólogo Anderson notou que alguns ipês-amarelos floresceram na cidade de São Paulo, mas isso só deveria ter acontecido no período de frio (entre junho e setembro). Segundo ele, a partir do momento que os ipês não florescem nesses meses, deixam de alimentar as borboletas e os beija-flores, afetando a polinização natural e gerando um desequilíbrio ecológico em grande escala.

Esse cenário fica ainda mais preocupante quando é levado em conta o atual estado de preservação da biodiversidade nacional. Dados da pesquisa Contas de Ecossistemas: Espécies Ameaçadas de Extinção no Brasil, feita ano passado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mostram que a Mata Atlântica é o bioma mais ameaçado, com 25% da fauna e flora correndo riscos. “A extinção das espécies acontece não só pelo cultivo de espécies exóticas, mas também por um conjunto de causas, como incêndios, desmatamento e urbanização”, completa Gustavo.

Existem mais de 1.500 espécies de bromélias somente no Brasil. A espécie é altamente visada para projetos paisagísticos, mas pode correr risco de extinção com a extração irregular — Foto: Foto: Pixabay / Catceeq / CreativeCommons

Existem mais de 1.500 espécies de bromélias somente no Brasil. A espécie é altamente visada para projetos paisagísticos, mas pode correr risco de extinção com a extração irregular — Foto: Foto: Pixabay / Catceeq / CreativeCommons

Por exemplo, o crescimento desordenado das cidades prejudica o desenvolvimento de espécies nativas ornamentais, que poderiam ser usadas em projetos paisagísticos. Isso porque, para ocupar novos territórios, muitas vezes são retirados trechos de florestas. Isso acontece principalmente com a Mata Atlântica, presente em 17 estados e concentrada no litoral, segundo estudo de 2014 do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e CNCFlora/JBRJ.

“No Nordeste estão as maiores taxas de desmatamento e extrativismo. No Centro-Oeste há bastante agricultura, mas ainda assim o bioma do Cerrado é menos agredido do que a Mata Atlântica”, afirma Anderson. “Há espécies que não somem totalmente, mas são consideradas extintas porque são encontradas somente dentro de áreas de proteção.”

Beleza rara

A extração de plantas silvestres – nativas ou exóticas – para comercialização também prejudica a preservação da flora, além de ser uma atividade ilegal. As famílias botânicas mais visadas para ornamentação, e que consequentemente sofrem mais riscos, são as dos cactos, das orquídeas e das bromélias – de acordo com Anderson, este último grupo floral é bastante procurado no litoral de São Paulo e do Rio de Janeiro, onde grupos anônimos trocam informações secretas nas redes sociais.

“Há pessoas que sabem exatamente o local onde encontrar essas plantas, inclusive as mais raras. A coleta irregular é feita para adicionar às coleções próprias e mostrar status social”, ele comenta.

Mudas brasileiras

Comprar plantas que estão na moda também pode colaborar com o comércio ilegal, caso a origem dos exemplares não seja de confiança. Profissionais do setor estão mais conscientes do problema e o grande desafio é fazer com que o consumidor tenha informações mais claras e precisas, posto que não existe um sistema de certificação brasileiro que confirme se a espécie é de produção regularizada.

“Comumente, as pessoas pedem jardins espelhados em projetos já existentes, usando as mesmas espécies de plantas. Com isso, os produtores não se sentem estimulados a diversificar o cultivo de outras espécies”, diz Anderson. Isso faz com que surjam jardins cada vez mais parecidos, com baixa biodiversidade e pouca capacidade de “serviços ambientais” – como manter o solo fértil e purificar o ar e as águas.

Nesse sentido, os especialistas consultados para esta reportagem apontam que, além de se preocupar com as tendências e a estética, é preciso cada vez mais que os profissionais do setor considerem espécies nativas e de procedência regular. “Hoje existe o conceito do paisagismo ecológico, que consiste em pensar que os jardins servem não apenas aos humanos, visto que existem outros elementos vivos nas cidades, como os insetos polinizadores”, afirma Anderson. Assim como defendia Burle Marx, valorizar as raízes tupiniquins é um dos caminhos para preservar os pilares do paisagismo e garantir o equilíbrio ambiental.